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31 de março de 2020

«Então, vá, malta, se me puderem dar a palavra só por uns minutos» — interrompe uma voz na outra ponta da mesa que ocupa quase o salão inteiro. Já deve estar na hora. Baixam-se os copos e as conversas íntimas que se vão tendo aqui e ali, e a música de fundo quase já não se ouve, como que se a abrir caminho para o discurso que se avizinha. — «Obrigado. Eu queria fazer um brinde a estas duas crianças apaixonadas que nos juntaram aqui hoje, e, hum, escrevi umas palavras para tentar não me esquecer de nada» — desdobradas e desajeitadas, numa folha de papel que saca do bolso do seu casaco de fato. — «Parece que foi ontem que este menino veio ter comigo a um café ao final de uma noite, depois de um encontro com uma rapariga que tinha conhecido na semana anterior. Aspecto de alguém que estava completamente perdido para a vida. Ainda pensei que lhe tinha acontecido alguma coisa de mal, mas quando ele começa a falar, a única coisa que me consegue dizer é, e passo a citar: "Acho que é ela. Acho que conheci a mulher da minha vida". Ri-me tanto nessa noite. Não te escondas! Ele não tem coragem para admitir, mas estou cá eu para o lembrar destes tesourinhos. Ele depois continuou a falar e parecia que estava a descrever um anjo, o vestido às flores estampado, os cabelos dourados ao vento, os olhos que o deixavam à deriva quando se cruzavam com os dele. Quem diria que estaríamos aqui passado um ano, e que essa rapariga seria agor—».

Aproveitei a primeira oportunidade para escapar despercebido com o meu copo a caminho do jardim; mais fácil quando ninguém me reconhece na multidão. Fechadas as portadas de vidro, a voz tornou-se pouco mais que um ruído inteligível, já tão longe de mim e da dor que me causa. Cheiro a relva e gotas a pingar das lâmpadas que penduradas iluminam de forma tão suave os muros de pedra e os sobreiros da quinta. Má sorte para eles, talvez as nuvens estejam do meu lado hoje. Que horas são? Acho que já fiz a minha parte com acenos e conversas banais para justificar ter vindo. Ela não vai dar por minha falta se for agora embora. De que é que estava à espera, sequer? Merda. Não. Não vou por aí. Eu sabia. Não estava à espera de nada. Um sorriso, os parabéns, sentar-me e aguentar meia dúzia de horas como um adulto responsável, sem me desfazer em pedaços ou fazer figuras a olhar pelo fundo de uma garrafa. Ficar contente por ela. É isso. Ela está feliz. Ele deixa-a feliz. É isso que importa.

— Não estava à espera que viesses.

Uma voz sentada no canto do olho, e uma figura mutuamente conhecida que já não me lembrava ver. O grupo inseparável que éramos. As conversas parvas que tínhamos todos os dias sobre assuntos que não interessam a ninguém. No fim, depois da vida acontecer, cada uma segue o seu caminho, as linhas destinadas a cruzar-se nestas ocasiões ou noutras menos felizes.

— Nem eu. Estou a pensar que se calhar não devia ter vindo. Mas ela convidou-me. E eu vim.

— Faz sentido. Estás a gostar da festa?

A adorar. Ouve-se um riso solidário de ambos os lados para a pergunta que foi feita apesar de se saber já a resposta.

— Estás-te a aguentar, pelo menos? Queres desabafar um bocado?