Devaneio (I)
20 de março de 2020Há um banco numa estação no meio do nada. Digo, literalmente no meio do nada. Tem uma linha que segue apenas numa direcção, um coberto para aqueles dias mais chuvosos - com o resguardado banco mencionado por baixo - e em volta, toda uma enorme ausência de tudo o que seria normal de se ver na paisagem envolvente. Nada é... nada. Zero. Vazio. Ou azul; eu gosto de azul. Mais romântico e tudo, os dois sentados algures num mar de azul, à espera da carruagem que os leve até ao seu destino, seja lá esse onde for. Juntos, talvez, mais pitoresca a fotografia se encaixar. O estado dos carris não inspira a maior confiança, a madeira como está, a natureza a retomar o que é seu, mas a esperança é... a verdade é que a esperança é um pouco aborrecida, e é melhor não a mencionar não vá ela causar mais problemas. Digamos apenas que se aquela placa com previsões estivesse a funcionar, possivelmente não apontaria para o mesmo ano que o nosso; que os relógios já se cansaram todos entretanto e que já não há mais tempo para ninguém.
— Hum. Posso-te fazer uma pergunta estranha?
Olhos que não descolam do lápis que se arrasta de um lado ao outro da página. Joelho como cavalete, e um céu que se preenche lentamente em tons de cinza. Ouve-se uma espécie de grunhido como que se a dar luz verde ao disparo.
— O que é que achas que vem aí?
— Um comboio?
— Está bem, e como é que achas que ele vai ser? Grande, pequeno, antigo ou moderno... se eu tivesse de apostar, diria que vai ser a vapor. Pelo aspecto deste sítio. E tu?
— Eu não sei. Faz diferença?
— Não. É só que... nós não sabemos onde estamos, não sabemos como é que viemos aqui parar. Não fazemos ideia se vem aí alguma coisa, ou quando é que vem; para onde é que vai, ou se vamos os dois para o mesmo sítio. Estamos à espera, mas, à espera do quê, mesmo?
A pausa é suficiente para assentar a questão. Uma mão que não pára, e uma resposta que se atrasa um pouco.
— Não sei.
— Sim, eu também não. Chateia-me um pouco não saber.
— Sabes que não te vale de muito. Não temos outro remédio senão esperar. Eras mais feliz se arranjasses alguma coisa para te entreter, nem que por um bocado.
— Como tu, com o teu caderno os teus desenhos infindáveis do mesmo céu? És feliz assim?
Outra pausa. Desta vez com um suspiro profundo com vista para o horizonte, daqueles que se arrastam de propósito com desdém evidente. O lápis já não se move. Os olhos falam por si.
— Então porque é que não te chateias também?
— Porque não há nada que eu possa fazer! Já fomos para um lado e já fomos para o outro, e todos os caminhos vieram dar aqui. Sim, é frustrante não saber o que raio se está a passar, pensar que podemos estar à espera de uma coisa que pode nunca vir, mas se a tua sugestão é entrar em parafuso e ficar a pensar apenas nisto, eu fico-me pelo meu caderno.
— E ele deixa-te feliz?
— Mais feliz que a alternativa, sim. Eu sei que estás a tentar dar a volta ao que eu disse. É uma pergunta minada.
— Minada?
— Sim. Ninguém é feliz, não no verdadeiro sentido da palavra. Pergunta a quem quiseres. Nós não fomos feitos para isso. Vai sempre haver alguma coisa que nos vai deixar ligeiramente insatisfeitos. Alguma coisa que nos vai fazer não saber a resposta à pergunta; e quando não a sabemos, ela é óbvia. É quem somos. Faz parte de nós. E é por isso que temos de aproveitar as coisas pequenas. Eu tenho o meu caderno, e tu devias encontrar alguma coisa parecida. Pelo menos para ajudar a fazer o tempo passar.
(...)