(sem título)

1 de maio de 2021

       É num momento. Quando as palavras te saltam da boca, quando as ouves, por fim, fora de ti, tu sabes — não há voltar atrás. Não as consegues engolir de volta. A tua verdade, da forma que a conheces, da forma que a vieste a construir ao longo de tanto tempo, desapareceu. Sumiu no ar, com todo o teu pequeno universo. Não és mais também, tu. Não do mesmo jeito. Não era o que querias, afinal? Não era o objectivo de tudo isto? Não podia ser de outra forma. Não agora.
       Uma engrenagem ouve-se distante. Uma única rotação. Os ponteiros rodam com ela e o tempo é devolvido ao seu papel. Há algo de diferente no ar.


       Verde e um Sol de Verão. Uma viagem na brisa que entra, no tilintar das garrafas e bugigangas a cada buraco da estrada. Calor e suor e barulhos que jorram para fora de altifalantes cansados e se dissolvem no último vislumbre antes da porta se fechar. Imagem de um sítio agora tão despido, tão cheio de possibilidades. A memória estica-se, perdura, formas movem-se para um lado e para o outro, inaudíveis numa peça que nos condensa no mais pequeno pedaço de nós. Evapora num instante, tão curto quanto foi, e ao peito a última caixa que levo embora.
       Estática e um estalo no rádio quando a cassete acaba. Volto a mim, perdido, aqui só o suficiente para coordenar os pés com as mãos. Um olhar para longe, a cada casa que passa, imaginar as suas vidas e a minha e o quão diferente teria sido. Se calhar aconteceu tudo de forma errada. Se calhar o universo só se tem estado a corrigir.
       Já não é longe. Um túnel, duas pontes e o topo de uma colina. Alguém tem cuidado do jardim. Quase como se nada tivesse mudado se o silêncio fosse normal, sem gritos de crianças ou remexer de tachos na cozinha. Abrir janelas para arejar o tempo que se guardou cá dentro e ver a lua chegar entre limpar anos de pó acumulados e descarregar o necessário para sobreviver a noite.