Miragem
23 de julho de 2010Nunca te vi aqui, estás perdida, precisas de ajuda?
Não sei o que me levou a dizê-lo, saiu instintivamente, como se fosse a coisa mais natural possível, e quiçá tenha sido, não sei bem, sei apenas que o disse, e que tudo começou aí – ela não respondeu, ela nem sequer se moveu, para ela eu não existia, certamente não era mais que uma brisa, entre tantas outras, que por lá passava e que desapareceria em instantes, tal a sua fragilidade, Este não é o seu mundo, é demasiado banal para o ser, por isso é que pára tantas vezes naquele local, suspirando de tempo a tempo quando lhe dirigem a palavra, sempre com o olhar fixado numa ou noutra coisa, Tem saudades da sua casa, também teriam se este não fosse o vosso mundo, defendia-a cada vez que ela vinha ao assunto.
Ninguém a compreendia, e mesmo afirmando o que afirmava, nem eu era capaz de presumir tal coisa, afirmava-o exactamente por não compreender, por saber existir uma explicação por detrás de tudo, ainda que não tenhamos conhecimento dela, assim foi feito este mundo, muito para além do banal e do aborrecido com mistérios tais, É muda, mas já tantos disseram que a viram falar com amigas, Então não sei, mas normal não é, tema de conversa inevitável entre o grupo de rapazes com quem eu andava, escolhido de uma lista caricata pela escassez dos mesmos, E quem é que decide o que é normal, tu, sendo também inevitável o rumo tomado pela conversa enquanto me encontrava presente.
Silêncio constituía-se como todo o som audível perante as minhas tentativas de comunicar com ela, não sei porque o fazia, sempre o vi como o mais insignificante mistério no meio de tudo aquilo, mas um dia, talvez resultado desse mistério, ou de outra coisa qualquer, nada inteligível à minha pessoa, ela reagiu à minha voz, arrancando os olhos de uma velha árvore cuja existência excedia a minha por largos anos, famosa por eventos que ninguém na vila se dignava a explicitar, e olhando-me pela primeira vez, repetindo as mesmas perguntas que lhe fiz há muito tempo atrás.
Desde então nunca mais a vi, por golpe do destino, talvez, ter ouvido a sua voz terá sido demasiado, e ter arrancado os seus olhos daquilo que observavam tão atentamente heresia, porventura, pois também essa miragem se concretizou pouco tempo depois.