Outro

28 de dezembro de 2019

Não com um estrondo, mas com um gemido. O pano cai. As luzes sufocam, uma a uma, esticando o tapete a uma lúgubre escuridão. O silêncio. Tangível como nunca. E não se ouvem. Quase não se respira com a antecipação, e elas insistem em não chegar. Não foi bom o suficiente? Não mereceu os aplausos?

Foi isto?

Que horas são? Onde estou? Este sítio... já não me lembrava dele. Das cores; do cheiro. Caixas atulhadas de mim, escondidas - guardadas? "Não abrir". O olhar que era só teu. A fantasia e a inigualável dor. Aquilo que queima por dentro. Que arde. Perdoa-me o riso mas não o consigo conter, tinha-me esquecido do teu brilho. Da mão esticada, que não agarrei no momento certo. Embora, para ser justo, também te possa acusar do mesmo.

O que é que andamos a fazer? Branco, laranja, e, sei lá, todas as outras cores de todos os outros espectros. Estamos a escrever a nossa história como espectadores, audiência distante para autênticos lunáticos, e é hilariante. Somos crianças! Dois miúdos à deriva na imensa vastidão de um mar que não conhecemos, a recitar falas que não são nossas, a fingir que somos quem realmente queremos ser, porque talvez, só talvez, as coisas façam sentido assim.

Excepto que não fazem. Ambos sabemos que nunca vão fazer. Este mundo não foi feito para isso. Tantas luzes, tanto aparato - e para quê? É tão simples. Somos nós. Somos só nós. Não há nenhum manual que nos ensine a ser quem somos. Podemos ser o que bem entendermos. Se quisermos, até podemos não ser. Porque é que temos de andar sempre atrás daquilo que faz sentido?

É que este mar? Ele sempre foi nosso, e nada vai mudar isso. Não interessam as travessias, o rumo, ou seja lá o que for. Tal como somos quem somos, ele é o que é. Se faltar; se alguma vez deixar de o ser, então, a culpa não será senão nossa.

E é-a tão claramente! Não sei quem deixou duas crianças a cargo de algo tão importante, mas estaria à espera de outra coisa? O certo é que já não vem; o passado não volta e a deriva continua. Perdi conta de quem sou, de te ver, e imaginei-me de novo - sem ti, e sem tudo isto. Até que acabou. Atribulado, o regresso, desafiou o mundo e trouxe-me novamente aqui, à deriva, nesta imensa escuridão.

Aqui. Onde tu estás. De onde não saíste. Não faz sentido, e talvez seja melhor assim. É isso que é suposto se dizer, não é? A expectativa de que da metamorfose resulte algo que se encaixe nos padrões da normalidade. O importante; o importante é que o ponteiro continue a mexer, não se quer nada para além disso.

É mentira. É óbvio que é mentira. Não pela mentira em si, mas pela sua edificação como uma demente e deslavada esperança. É ela a única coisa que te faz abrir os olhos pela manhã, que te instrumenta a fuga da prisão que são teus sonhos, e é tão, tão frágil, que não ousas recitá-la por saberes não existir passagem de regresso.

Caminhas em bicos de pés em volta dela, e é assustadora a habilidade com que o fazes. Sabes exactamente onde pisar, e quando o fazer; movimentos praticados em quantos outros percursos? Já devias saber. Mesmo que te convenças do contrário, foi a tua volição que te trouxe aqui. E o que vês? O que te resta? Como sabes que é real?

Tal como és, neste momento, não acredito que saibas sequer o que isso significa. Perdido, e encontrado, mas as peças, quando tentas, não encaixam todas no mesmo sítio. São de outra pessoa, ou serás tu?

Sobra, no fim, a amálgama que se dá pelo teu nome. Irreconhecível, já há muito, exacerbado pelo teu consentimento e pela tua imensurável irresponsabilidade. Podias ter sido tão mais do que foste. Podes ser tão mais do que és. Mas, talvez.

"Talvez seja melhor assim."

Se não te chega, agora, toda a raiva e todo o ódio no mundo - se isto não te move, e te faz acordar de uma vez por todas - suspeito que não estarás cá já, e lamentar-me-ei por todos os que alguma vez ansiaram por algo de diferente em ti.

Numa outra realidade, há muito tempo atrás, o homem que destruiu o mundo fê-lo não por ódio ou algo similar, mas por se ver ausentado de uma alternativa. Para ele, e quiçá se apenas na sua incontornável limitação, aquele terá sido o único rumo possível. Os destroços de tão incompreensível destruição roeram tudo aquilo que restava dele, e o mundo que construiu de volta - na imagem da sua melhor memória - existiu, é certo, mas a que custo?

Já não há nada em mim para celebrar; lá nisso tens razão. Sou uma sombra de mim. Da ideia de tudo aquilo que podia ser, ou que outrora fui. Mastigado. Cuspido de volta. Amassado por tudo aquilo que é normal, e expectável, e bom, e certo. Deformado e embalado num pacote que cumpre todas as normas; fácil de rotular, fácil de usar, fácil de arrumar quando não for mais preciso. Roeu, e roeu, e roeu, até não haver mais tutano, carne ou osso, até o espelho não mostrar imagem mais e até não ser possível conhecer-me para além desta contorção de mim.

O custo fui eu. A culpa foi minha. Aquilo por que não se luta, que não faz sentido, que não se merece, que não se discute e que não se questiona. As vozes que não se calam. As lágrimas que não param. E eu estou farto. Estou tão farto disto.

O destino é evidente, a sua observação opcional, e garanto-te que não ficarei cá para apreciar os foguetes. Este mundo - esta coisa que construímos com pedaços de nós - implodindo, não tem qualquer remendo. Já basta este insuportável negrume para perceber aquilo que aí vem, e não contes comigo para os créditos.

O módico de clareza que o fim transporta consigo é a sua única benesse. Atendidas as deambulações de uma sombra cansada, não há mais nada aqui. Não há outro caminho senão para cima, para fora deste sítio que roubou já mais do que o suficiente de mim, e conto todos os segundos que faltam para deixar de os contar.

Ainda assim, e depois de isto tudo, não consigo deixar de o fazer. Todos queremos ser felizes, seja lá o que isso for, da forma que o for, custe o que custar e doa a quem doer. E ao final do dia, é só isso que interessa, não é?

Bah.