Não é teu para controlar. Não é teu, de todo. Sentir o que tens a sentir, o que não imaginaste que tivesses, e escrever a limpo a história no espaço que ficou. Todas as palavras, uma a uma, para que não te possas mais mentir, alimentar a compulsão que te prende a este sítio. Todos os dias. Todos, até que o sintas real. Até que te esvazies e inundes a terra do que teimas em guardar. Talvez assim me deixes respirar de novo.
Não há nada que eu diga que vá mudar o que é. O que aconteceu, agora é a tua história. Vais-te lembrar e vais-te esquecer, e mais dias assim encontrar de volta o que achaste esquecido. Como se te visses fora de ti, uma imagem que já mal reconheces. Tudo desde aí são só, coisas, pequenas esperas para algo maior. No entretanto, ou até lá, será que há algo nisto que seja real?
É simples porque é simples, mesmo que às vezes não seja. Só tens de suster a respiração por um minuto. Porque não tem nada. Não é nada, esse turbilhão que tens. Quando passam os segundos, e as perguntas, e os caminhos que te imaginam em fuga para as responder, não há nada que fique para além do que é simples, e às vezes isso é nada também.
As pessoas vão-se guardando para aqui e para ali, deixam um espaço cá dentro e lá fora. Ele acaba e começa de uma vez só. Amolece e arranca num só suspiro. Transforma tudo consigo, também. Se te apanha o cansaço, vês nele a esperança que rejuvenesce e te traz de volta ainda que nem saibas do quê, ou talvez por isso mesmo. É a promessa que te fizeram, o microcosmo de toda a tua vida. Que vais fazer senão acreditar? Deixas-te levar pela ideia. Planeias tudo dentro de ti a caminho de casa e mergulhas bem fundo nesse sentimento. Absorves toda a cor e todo o ruído e, por um momento, é como se não houvesse mais nada.
Acho que podia viver aqui para sempre.
Nada se renova à minha volta. Aquilo que uso para ocupar o que não existe não tem o seu nome, não faz o seu papel. É só quando se torna demais que me apercebo — eu fujo também. Sem mexer os pés ou dizer uma palavra que seja, basta não estar cá o suficiente para me ter por inteiro e eu sinto-o, viver só em parte é como não o fazer. Parte do caminho, talvez, da outra pessoa que vem, ou para onde vou, e estou só receoso de ser deixado para trás na mudança, mais uma peça da história que ficou, ou talvez não, e este momento em que me sinto realmente cá, de olhos abertos, a ver, enfim, aquilo de que me fiz rodeado na minha ausência, é a lucidez que me falta e se escapa por entre os meus dedos quando a tento agarrar.
Há um caminho que se encontra na volta. Uma inquietação que se sente na pele. É diferente. Não é o que se imagina porque isso já foi, é o que vem a seguir, ou talvez um pouco depois, ou talvez muito depois. Se se imagina também, tem outra cor e outro cheiro e um casaco vestido laranja em volta de um vestido de verão estampado em flores.
Imagina-se voltar e perde-se no caminho porque não há um mapa para estas estradas, ninguém as faz neste sentido. É sempre mais e diferente e distante, como se o valor exonerado do que foi, mas há quem espere lá por ti.
A voltar tudo anda ao contrário. Começa-se no fim as conversas e acaba-se com um beijo e um abraço e um olá. Pensa-se ao contrário também, e certezas abrem espaço para um nervoso miudinho de quem não sabe ler uma pessoa escrita numa linguagem só um pouco diferente, sem pontos nem vírgulas nem interrogações que se exclamem. Soberba a ideia de a aprender sem nunca perceber o quanto muda.
Viajo assim, para trás. O Sol nasce a poente e eu com ele.
Está tudo errado. Tudo aquilo que escrevi para mim não aconteceu. Não me tornei na pessoa que queria ser de forma mágica, não caí no meio de uma história que se inventou em especial para mim. Não é por querer e sonhar. Por me ocupar todos os momentos, todos os espaços vagos no meu pensamento. Não é por nada, enfim, é só como as pessoas são. Se tudo aquilo que podia estar, está errado, é a única forma que podia estar, também. Talvez seja preciso. Como se vontade dos astros manifesta, dando voltas em torno de si e a voltar, talvez precise de estar tudo errado para deixar de estar.
Não és mais rápido que as passadas que dás em falso quando te pões em fuga, o mundo inteiro a distorcer-se como um caleidoscópio à tua volta, as vozes a saltar-te dos olhos e a contar-te a história de quem és no pequeno espaço que entre eles se queimou em ti, o ruído ensurdecedor que vais arrancando pedaço a pedaço da tua carne, no fim até o teu corpo te trai.
Quando dás pelo silêncio da manhã, onde estás?
Quando as vozes se dispersam na noite e só te encontras de novo, há algo que fica. Como o zumbido que incessante se faz ouvir por dias fora e tanto se afoga no teu esforço, também cá dentro encontras o seu par. Demasiado confortável para quem te faz sentir, indivisível de ti a seu tempo. Não era orgulho? Assim que eu me encontro, é um pouco só.
Foi num dia, como as coisas habitualmente são. Caiu na sua hora prevista a primeira gota, assim não tão longe daqui, e depois tudo mudou.
No fim, só apetece falar das estrelas e da lua e do tempo e das coisas mais miúdas que encontrei ao longo dos dias. De todas as folhas e todas as pedras, de todos os olhos e todos os lábios, da forma como se carregavam e da vida que viviam. De tudo o que continham dentro de si e como vieram ali ter, um momento congelado em mim para sempre. Ser pedaço de tudo e de todos ao mesmo tempo, e tudo o que me faz quem sou, na sua ausência me faria menos.
Estou num sítio estranho. Quando olho, ele dá-me duas opções: ou fico por dez minutos, ou vou embora. Uma ampulheta conta os grãos, grão a grão, até dar a conta certa, e no fim pergunta outra vez. Mais dez minutos. Não há nada no entretanto. A porta fecha-se e desaparece e o que sobra é o que existe já. Por mais uns minutos.
Ouve-se distante o ritmo de metal em metal, um comboio só a perfurar a escuridão da noite e tudo que ele tem. Tudo que não és, e já foste, e existe para além de ti. Tudo ao mesmo tempo, a rodar sobre si mesmo e de novo a acontecer. Talvez falta de imaginação, quem sabe.
Outra vez a saída. Uma brisa que há tanto não sentias, uma prisão, seja como for, embora se a reconheceres é melhor já do que era. Não és mais nem menos de tudo isso que és e sabes que não faz sentido. Tem de vir de ti, tem de ser tua a decisão. Não é uma escolha.
São só mais uns minutos.
Se me apaixonei por ti é porque não sei estar certo, e tanto mais começo a pensar que não posso saber porque não sei o que faria se soubesse, porque não é um fim, daqueles que se veem ao longe, que se imaginam e se esperam e se anseiam, e não é um para mim por estares certa e não o seres, só mais do que eu quero porque te quero mais do que tudo em mim.
Eu não estou aqui. Se for honesto, eu nem sequer existo. Sou só a memória de alguém melhor. Um sonho que não se concretizou. Prometo que tentei. Prometo, como se fizesse diferença, mas ainda há tempo. Se não existo, e não estou aqui, ainda podes ser tanto mais, mas não me leves contigo. Eu já não sou a pessoa que queres ser.
Tu não és quem pensas ser. A megalomania que às vezes bate é só isso, uma fantasia desbravada que existe pela tua necessidade de te justificar. Não és especial nem mais que ninguém, e as coisas a que te apegas tanto não fazem de ti diferente de alguma forma. Todas as variações já foram jogadas e usadas e descartadas por alguém. Tu és, tu. Para o bem e para o mal. Porque aquilo que bate em outros dias também não é real. Tens valor em ti. Não foste a primeira a fazer merda, a escolher as palavras erradas a dizer, a forma errada de agir, a pessoa errada para amar, a não perceber o que realmente importa até ser demasiado tarde e a sentires-te uma merda de um lado ao outro do Sol por isso ou outra coisa qualquer. És só tu, como tantas outras à tua maneira sem mais e sem menos. Há valor nisso.
Eu sei. Sei que olhas para trás, e que ainda lá estás quando olhas porque não tens como mudar. Não é consolo, mas é uma parte de ti. Só mais pequena quando vês o tempo passar. É tua para saber o que fazer dela.
Agora, anda, não fiques aí.
Há algo a ser dito sobre desaparecer. Sobre existir também, em contraste, e o quão fácil é deixar-se de lado e assim se ser deixado sem que se ouça um único ruído. Sem uma vibração no ar, sem nem um movimento ou um pensamento solto que se arrepie. Sem notar, enfim, ou pelo menos de forma que se admita. É na indiferença que se morre verdadeira. A primeira morte é no coração.
Quantas tens em ti, ainda? Quantas já viveste, e quantas faltam? A tragédia das tragédias que bate como um metrónomo, com a mesma força a cada vez que chega ou não pela ingenuidade que se perde no passar das estações. A laranja um pouco menos laranja agora e a rosa que já não se vê bem em si por inteiro.
É aí que acontece. Não em memórias que se fingem esquecidas, mas nas peças que vão ficando para trás no conserto por já não encaixarem direitas. Como um navio remendado, talvez tenhamos todos nomes diferentes no fim.
Eu não acredito em ti. Confundo com a verdade de que não se encontra o rasto porque mentir só faz sentido para quem sabe, e quem é que quer saber? Mais fácil assim. Se não fizer nada, e se não for nada, e se não acontecer nada. Ninguém te pode culpar quando o mundo acontecer por ti. A ti. Se não tem o teu nome, não foste tu. Não és, ainda. Nada mudou mesmo depois de tudo mudar, não é isso?
Só, há palavras reservadas. Coisas sem sentido. Desculpas que desculpas por alguém que não queres ser, e o que isso é não sei. É alguma coisa, e noto-o esfarrapado como sou, mas não sei. Nem isso, nem se interessa no fim, o não saber e não acreditar e ter ou não as minhas razões para o fazer, e recitá-las para que soem reais quando na verdade não interessam. É fugir. É o que sinto, embora colocá-lo em palavras soa tonto, para além de mim e distante de quem quero ser. Não o vou fazer mais.
Sou mais do que me tomas, só não te tenho em mim para resolver.
Não foi o que disse, para além do óbvio e do que sabias, mas a verdade nem sempre sai direita. Não por não querer ou achar ou querer algo diferente, mas também por não saber. Por tanto por pensar, tantas contas por fazer para chegar a um, sei lá. E é difícil, haver tanto. Em ti, e em mim, que há tanto.
Seja por não saber onde estou, por cá vir de alguma forma e não saber sair, livrar das coisas que ficam. De encontrar quem sou, ou saber-me encontrado num relógio que não pára de correr até me atingir na cabeça. Quando dizes que não queres, no momento, só corre enorme a inveja de saber, mesmo que de fora, mesmo que mentira. Perder-me em paredes brancas a tentar acalmar a ansiedade que enche, e ler demasiado ainda aí. Nem é que não haja razão de ser, aí, mas a normalidade não é necessariamente boa. Normal é algo que isto não é. Vale se for, e vale se não, e sinto-o, claro, nem fujo, mas já nem tenho em mim mais desculpas por tentar. Se não foi, também se aprende em não ser.
Imagino que sintas, também, embora em tanto que não conheço. Também não finjo saber ler mais que umas passagens. Fica a ideia que não estão tão distantes, e talvez te veja aqui se não sabes onde estás. Estar, querer, e o futuro incerto que vem. Se me tenho a mim num turbilhão, enfim. Não presumo saber melhor, mesmo em histórias que invento e nunca acerto, só não quero competir com uma história. Aquele conto, maior, ou talvez já esteja tudo fodido? Carrego se for preciso até não ser, e aceito, que me puxa. Quem és, da forma que fores, em pedaços ou não da pequena ou grandiosa incerteza como ninguém, e aceito. Há tanto, e sei que não sei, e é fácil dar a resposta fácil. Quase que sai de rajada. Não é menos verdade, assim, só menos na sua natureza.
Porquê? Porque quero. Não há uma razão solene ou um plano orquestrado, esses tenho modestos em mim em prol da realidade. O que há é uma miúda que se espera, desajeitada como ninguém, e o receio de não ser real. Não sei de onde veio ou onde vai, só que está comigo e não a vejo embora se não o fizeres por mim. Talvez com tempo, não consigo perceber. Talvez nem interesse. É tudo um sonho, não é? Acordas um dia e descobres que ainda és uma criança, atrasada para a escola e que ao final da tarde tens aula de natação.
Mas já sinto falta. Merda, é isso, não é?
As palavras saem tão fáceis quando já não é altura delas. Aquelas que ficaram por dizer, como se houvesse um momento certo para dizê-las. Talvez por já não fazer diferença? Acreditar, pelo menos. Não haver que possa fazer, não ter efeito que aconteça depois. Só te apercebes então. Quando as vês soltas a tingir todo o ar que vos rodeia e que respiram, em que te encontras, livre, sem que te pese o peito ou que te revire o estômago em noites passadas em branco. Acreditas, enfim, a custo de sonhos por brotar. Há consolo nisso.
Silêncio também. O que é e não é dito, que não só tu guardas palavras cá dentro, e como muda num instante. Inconcebível a mágoa por pessoas que ficaram por viver. Dessa vida que vives toda ao mesmo tempo e de uma vez só nos teus pensamentos. Uma distância que não consegues reaver, que foi já e não é mais, agora, para sempre.
Silêncio é tudo o que fica.
Complicado é uma coisa que se inventa. Não surge do nada, claro, mas também não tem razão de ser. É apenas por não se imaginar de outra forma. Aquilo que retirado de si deixa de o ser. Não entendo o apelo. A distância que fica depois de estar tudo dito alarga a cada dia que passa. Não lhe consigo escapar. Não faz sentido.
Há um sítio no mundo, em ti, onde podes viver a tua vida inteira. Vês as estações passar do lado de lá da janela, as cores que vão e vêm incansáveis na sua jornada. Contam-te as suas histórias, todos os anos as mesmas embora sempre um pouco diferentes. Trazem saudades de ontem e carregam-nas até amanhã, à tua espera, só que tu nunca vens. Há sempre alguma coisa. Nunca há nada. É complicado.
É cansativo ser complicado. A energia que requer para manter a trama em linha é tanto mais do que temos, não sei para que nos damos ao trabalho. Não é como se fosse melhor que a alternativa, francamente.
Só muito depois percebo que há um fim no início, e um início no fim, e histórias de cidades desertas acabam sempre antes de começar, e fico a pensar como é que alguma vez podia ser. Não há palavras que cheguem, não são precisas, sequer. O quão belo é sem que o tenhas de descrever, assim que tem de ser. Se te tens de convencer, é porque não é real.
Só que não tenho, e nunca tive, mas é complicado.
Onde estou, onde vou, o que estou a fazer. Não sei. Torna-se tanto mais confuso quanto mais penso. Às vezes é como se todo o sentido se evaporasse do mundo e o que resta é só, estranho, impiedosamente estrangeiro a quem eu sou, seja lá o que isso for. O assunto de ser, enfim, quem se é em contraste com a realidade, a imagem que tenho dissociada de toda a razão não se torna mais verdadeira pela minha vontade e talvez seja isso em parte. Somos quem somos, e talvez me veja distante quando as expectativas não se alinham.
É um pouco pateta. Não é como se o facto de me ver distante me exonerasse da responsabilidade de ser quem sou. Da merda que faço a tentar descobrir, a pôr em prática o que é ser humano. Não o faz, mas já esgotei as desculpas também. Há dias que são para o lixo. Dias em que sinto que tudo o que faço, tudo o que digo é meticulosamente escolhido para ser errado. Não sei evitar. Só aceitar e seguir e tentar fazer melhor na esperança que um dia as coisas se alinhem.
Talvez não aconteça, ou talvez só tenha de fazer tanta mais merda para lá chegar; ambas hipóteses razoáveis.
O que existe no meio é apenas ruído. Um lugar que entras sem dar conta e de onde não encontras saída. Não és tu, aí. Não és, pelo menos, quem te lembras de ser. Essa pessoa perdeu-se, os átomos que a formam dispersaram-se e a sua verdade existe só no que é agora um conto do que havia sido. Não mais o é do que quem vês, de carne e osso, e afinal quem é que se lembra de ti? Tu és ruído. Tu és tudo, e tu és nada, e este sítio é um entretanto. Um dia vais acordar sem ele. No fim ninguém se vai lembrar.
Já há muito que ando com a ideia de uma história na cabeça. Acho que em parte ela é inspirada naqueles contos que nos dão para ler quando somos crianças, o imaginário bucólico em volta deles. É a simplicidade da coisa. A inocência dela. Sempre quis acreditar que se há algo que vale a pena tentar capturar ou reaver, deve ser isso, aqueles olhos com que olhávamos para o mundo e que o pintavam de uma forma tão mágica.
A imagem que me surge logo é de uma janela. Redonda, a olhar para um parque com uma moldura de madeira num sótão poeirento sem grande luz, um pouco elevada mas com um arranjo de caixas e cadeiras por baixo amontoadas como se de propósito. O sol irrompe a partir dela ao nascer do dia e dispersa-se na copa das árvores ao início da tarde, e nas sombras esconde-se tímido tudo aquilo que ficou para trás.
Ninguém vive naquele espaço, mas há quem viva a partir dele. Pequeno como é, é o mundo para quem se pendura de braços cruzados durante horas a fio a ver as folhas a dançar de um lado para o outro num calado dia de Outono. A seguir o casal a brincar de mãos dadas com a menina de caracóis acastanhados ou o senhor de bengala a arrastar-se para dar de comer aos seus pombos, imaginar a sua vida e as suas histórias, inventar-lhes nomes e sonhos e aspirações.
Não tem nada de mais. Acho que é aí que lhe vejo a beleza. Não há drama, nem vilões, nem nada para salvar, só a vida como é vivida quando o tempo passa. Um dia os pombos veem-se sozinhos e a menina torna-se a protagonista do seu poema, e noutro já nada se reconhece do que havia sido naquela tarde. As memórias de um átomo, como se fossem, só menos emocionantes talvez.
Há uma outra ideia que vê esta história diferente. É algo que o leva a sair e a ir até lá, até à ponte de pedra que se ergue por cima do pequeno riacho que atravessa o parque de um lado ao outro. A bicicleta que ele encontra lá encostada, a pessoa que conhece e onde isso o leva a partir daí. Quase como pequenas recordações soltas de um Verão que se viveu há tantos anos atrás, e como a pessoa certa te pode marcar tanto e mudar-te por completo, a ti e ao teu rumo e aos teus sonhos que ainda estão para vir. Não há nada que se compare, e talvez nunca vá haver.
É melancolia. Não é a intenção, mas é o que fica. Quando vai e vem e o que sobra és tu, de quem nunca te vais livrar e com quem nunca vais estar feliz, fica aquele suspiro tão profundo que quase leva o mundo inteiro com ele. A pergunta, quando é que tudo deixou de ser o que era, ou, enfim, onde nos encontramos agora, achas que ainda vamos a tempo?
Voltas a ti num sítio que não conheces. A meio de alguma coisa. Estão a falar contigo. Uma, duas pessoas. Não consegues ouvir o que estão a dizer quando as suas bocas gesticulam como se conseguisses. Há mais à tua volta, mas há algo aqui. Este foyer não te é inteiramente estranho. Não é uma imagem numa memória que tenhas, apenas um ligeiro tremor que te percorre de cima a baixo e que sentes tão fundo nos ossos. Uma falha na realidade? Dás pela escuridão através das janelas como fronteiras para o que está além, um oceano de um vazio infinito. Um corredor iluminado chama-te à atenção, tudo o resto abafado pela bruma densa o suficiente para te perderes nela.
O tempo dilata ao primeiro passo. O salão escurece atrás de ti e o corredor arrasta-se à medida que o percorres. Quando olhas de volta já não vês nada para além do que está à tua frente. Estás sozinha. Sentes-te sozinha. Ainda assim há algo aqui.
Não acontece logo. Ele perdura o tempo suficiente para que te lembres, não de tudo, não funciona assim, mas daquilo que um dia te fez pensar que valia o esforço e que as coisas se iam encaixar, fazer sentido no fim. Acreditaste mesmo nisso. Essa pessoa és tu. Os montes e vales desaparecem numa história por que te apaixonas ainda hoje e nem sequer dás por quando essa paixão se torna o teu conforto e toma conta de ti. O teu corpo alugado, sem seguro, a guardar marcas de cada vez que te esqueces. O que é, o que foi já não interessa. É hábito. Rotina, apenas. Não sabes porquê mas não perguntas, a ideia tão remota que não a consegues ver a olho nu.
Se calhar não é isso. Talvez não queiras. É esse o peso da responsabilidade desse sonho? O quão fundo vai? Se não dás pela luz onde estás, se isso não te diz nada sequer, é hora de acordar. Agarrar a mão que te esticam ou fazer o caminho só, mas sair. Sem promessas. Sem pretensas. Não sei o melhor para ti, só que deves estar cá por inteiro para descobrir. Viver na promessa de uma memória é não viver de todo.
Tanto tempo quanto lhe dás, mais rápido ele vai. Até bater de frente e parar de uma vez só, desalmado, a saber melhor que ninguém o que o espera ou a ideia apenas, entre muitas outras a mais provável. O universo inteiro a convergir noutra direcção e ainda assim ele vai. Se nem o cosmos, qual é a chance?
É indiferente. É natureza, apenas. Não saber como também é razão. Vezes que foi, e parou, e morreu e próprio se olhou com o sufocante desdém de que fosse possível ser assim, e se levantou para o ver depois na madrugada de mais um dia. A máquina que o move não faz ideia, nem sequer conhece melhor.
Irremediável, assim. A esperança de aprender vê-se consumida no alento implacável em que a loucura se acha branda, no tamanho húbris que o informa. Aquele que não muda. Ele, que não cresce. Declama-o com todo o ar dos seus pulmões e responde-lhe no fim. De que vale uma chance se não for arrancada do mesmo tecido que forma os céus e agarrada com as minhas próprias mãos?
Não há lá nada. Já olhaste uma, duas, vinte vezes e nunca há lá nada, não é na tua imaginação que se vai fazer o obséquio de se tornar real. Talvez seja só hora de arrancares a cabeça do rabo e deixares-te das merdas que vomitas a cada chance que tens. Não interessa quem convences quando só te tentas convencer a ti. Ah, há tanto mundo lá fora. Estás à espera de quê?
Quer dizer. A verdade é que não tenho — quero, é mais isso, quero-te contar uma coisa. Não é nada de mais. Agora que penso, se calhar já sabes. É óbvio que alguém já te disse, estou a ser parvo. Mesmo que não te tenham dito, é óbvio também. Não estou a fazer sentido, desculpa. Não é nada, esquece o que eu disse.
Para além disso, o que é não te ia interessar. É complicado. Aliás, não é mas é um pouco, e daí não é de todo. Não sei, não dormi muito bem hoje. Quem é que te contou, mesmo? Não digas. Se tu souberes e eu souber que sabes depois não podes voltar a não saber e eu não posso voltar a não saber que sabes e as coisas mudam e viram-se todas do avesso e isto já é chato como é sem isso. É sempre assim. Mais vale deixar o bicho morrer de idade do que atirá-lo para a guilhotina e para a caixinha onde ainda se apercebe que tem um torso a menos.
Ah, merda. Onde é que fui buscar esta ideia. Onde é que tinha a cabeça. Dá-me uma pá para escavar um buraco e lá vou eu, ninguém me apanha mais. Podemos fingir que isto não aconteceu? Estou a tentar não sair daqui disparado a gritar pelo caminho. Espera, se calhar é uma solução. Merda. Merda.
O quê? Não não, eu nem disse nada sequer.
Todas as luzes do céu se apagam no fim. Turbilhões de pessoas que se dissipam em momentos inebriados e sobram pequenas vibrações que se moldam em figuras que não existem mais sem alternativa senão tornar-se o próprio tecido em que se imagina o mundo. A inevitabilidade que se vê real. Quando tudo vai e tudo fica, onde nos encontramos depois?
Algures, algures, não assim tão longe daqui, vais-te ver outra vez. Finalmente, sem nem te reconhecer, fazer tudo certo. Juntar palavras, todas elas pela centésima vez e meticulosas como sempre, soltá-las numa linha só, para quem as tiver de ouvir ou para quem as quiser, tão verdadeiras e tão sentidas ou não por quem tu és e te tornaste, e vais ficar bem. Não nos encontramos depois. Há um outro amanhã lá, e está tudo bem.
Tão distante de ti e de quem tu és, não a sentes na tua pele? No teu corpo por inteiro e de repente, como mudam as estações e as pequenas coisas de que não dás conta até o momento que te faça parar. Quando chegam as primeiras águas de Março, as flores e o Sol e a lenha que arde nas lareiras quando ele se põe, tão rápido que vai quando não te vês assim. Tens tanto, todos os dias e todas as horas, mas quanto és realmente tu? Não sentes a tua falta?
Ouve-se o silêncio pela primeira vez em muito tempo. Quando foi a última e só ficaste de olhos fixados na única coisa que restou. Sombras atravessam de um lado ao outro da sala e dás por ti já bem longe da luz da manhã. Vês cera a pingar dos cantos dos castiçais e ouve-se a chuva a cair lá fora. Não estás cá, mas não podes ir mais. Quase tropeças quando te levantas e apagas as velas. Abres os cortinados e empurras as janelas e respiras fundo. Não é um fim, com tanto pela frente. Ainda há um dia aqui.
Na mesma noite e na mesma chuva e na mesma Hidra de Saint-Saëns e barroco a verter pelas paredes, inebriado na multidão, nas escadas, mármore, soalho em madeira, a subir em frente e o olhar lá para longe e para o fundo e para, nada. Nem lá, na sala verde, no foyer ou durante o concerto, sem nem te conseguir roubar um único olhar religioso repetindo os mesmos passos da última vez. Sem ti, no fim, sem mais, enfim, não vale para ser assim, que se deslaça quando a agulha se levanta e me leva este sonho.
Escadarias atrás de escadarias num labirinto de salas e salões e recantos escondidos num edifício que ia jurar não ter fim. In media res numa espécie de festa: burburinho de fundo, cheiro a tabaco, pessoas bem vestidas de copos na mão e rostos em sombras e amarelos por lustres suspensos em motivos florais de estuque que se alastram do tecto para toda a parte. Dos degraus em mármore bege ao ranger do soalho velho quando chegamos ao terceiro andar, suave soar da cadência da chuva no telhado ao cruzar-me contigo lá ao fundo, primeira de várias vezes. Acenamos discretos quando se dão os olhares e seguimos conversas interrompidas, sempre por acaso em sítios acomodados pela vastidão da noite e pela noite sem fim. Quando nos arrastam no fim de fartos de nós e nos deixam de guarda-chuva a sós lá na entrada da boa sorte, quando te vejo e respiro e engulo o nó e o turbilhão que nos enche, eu sei, é isto, agora, a combinação que nos faz em meia dúzia de passos e palavras antes de baterem as doze badaladas, e é no teu calor que sinto que talvez um dia vá ser real.
“When I take you to the Valley, you’ll see the blue hills on the left and the blue hills on the right, the rainbow and the vineyards under the rainbow late in the rainy season, and maybe you’ll say, “There it is, that’s it!” But I’ll say. “A little farther.” We’ll go on, I hope, and you’ll see the roofs of the little towns and the hillsides yellow with wild oats, a buzzard soaring and a woman singing by the shadows of a creek in the dry season, and maybe you’ll say, “Let’s stop here, this is it!” But I’ll say, “A little farther yet.” We’ll go on, and you’ll hear the quail calling on the mountain by the springs of the river, and looking back you’ll see the river running downward through the wild hills behind, below, and you’ll say, “Isn’t that the Valley?” And all I will be able to say is “Drink this water of the spring, rest here awhile, we have a long way yet to go and I can’t go without you.”
― Ursula K. Le Guin, Always Coming Home
Levantou-se uma névoa com o nascer do novo dia. Ainda fresco na noite e já a promessa de que se irá erguer alta uma estrela no céu. Amanhã, amanhã, aconteça o que acontecer, diz ela, para brilhar como se não o houvesse mais, quem sabe talvez não haja um dia! Fazer o seu melhor até então, por si mesma e enfim, quando não chegar, quando não valer mais, assim, assim o será o que vale apenas por isso!
É num momento. Quando as palavras te saltam da boca, quando as ouves, por fim, fora de ti, tu sabes — não há voltar atrás. Não as consegues engolir de volta. A tua verdade, da forma que a conheces, da forma que a vieste a construir ao longo de tanto tempo, desapareceu. Sumiu no ar, com todo o teu pequeno universo. Não és mais também, tu. Não do mesmo jeito. Não era o que querias, afinal? Não era o objectivo de tudo isto? Não podia ser de outra forma. Não agora.
Uma engrenagem ouve-se distante. Uma única rotação. Os ponteiros rodam com ela e o tempo é devolvido ao seu papel. Há algo de diferente no ar.
Verde e um Sol de Verão. Uma viagem na brisa que entra, no tilintar das garrafas e bugigangas a cada buraco da estrada. Calor e suor e barulhos que jorram para fora de altifalantes cansados e se dissolvem no último vislumbre antes da porta se fechar. Imagem de um sítio agora tão despido, tão cheio de possibilidades. A memória estica-se, perdura, formas movem-se para um lado e para o outro, inaudíveis numa peça que nos condensa no mais pequeno pedaço de nós. Evapora num instante, tão curto quanto foi, e ao peito a última caixa que levo embora.
Estática e um estalo no rádio quando a cassete acaba. Volto a mim, perdido, aqui só o suficiente para coordenar os pés com as mãos. Um olhar para longe, a cada casa que passa, imaginar as suas vidas e a minha e o quão diferente teria sido. Se calhar aconteceu tudo de forma errada. Se calhar o universo só se tem estado a corrigir.
Já não é longe. Um túnel, duas pontes e o topo de uma colina. Alguém tem cuidado do jardim. Quase como se nada tivesse mudado se o silêncio fosse normal, sem gritos de crianças ou remexer de tachos na cozinha. Abrir janelas para arejar o tempo que se guardou cá dentro e ver a lua chegar entre limpar anos de pó acumulados e descarregar o necessário para sobreviver a noite.
Afogam-se, uma badalada de cada vez, nos cantos imundos deste sítio. Deformam-se violentamente na súbita constatação da sua natureza, como ar a ser sugado de uma garrafa enquanto dança e se contorce, e dissipam-se merencórios na tua direcção. Vidrados em ti, os olhos dos cadáveres intumescidos à tua volta, lânguidos e despidos de feições, inteiramente irreconhecíveis, e ainda assim o sentes, as suas intenções, o ódio que te têm e que vais saneando a cada trago em busca de um dilúvio de proporções épicas, um nunca-mais, para sempre, nesta escuridão.
Uma voz irrompe do vazio quando te apercebes do auricular que pressionas contra a orelha esquerda. Uma mescla de ruído ao início, tão distante, que toma forma quando rebate, um suave, sim, e as agulhas que se alojam na tua espinha sem te prestar satisfação. Perceptivelmente eterna, a pausa, a respiração pesada a aparentar ser a única função ainda permitida pelo teu corpo. As luzes não acendem para iluminar os pontos que não ligam. Não há nada, aqui, em ti. Não tens memória disto.
«****, és tu? Onde estás? Estás bem?»
Sentes uma pressão no abdómen. Uma imagem do oceano perdura na tua mente, a sua vastidão a engolir-te à medida que a absorves. Foi a última vez que te vi. Sons em formas de ondas tingem o horizonte, e tudo se desfoca pouco tempo depois.
Não te conheço. Aconteceu súbito e não estava mais lá, olhar distante a rematar a mentira e ar que se expeliu, desperdiçado, sem significado à vista deste lado do oceano.
Não te conheço. Mal te vi, intrincada fantasia imaginada numa ausência de forma, num “e se”, a estropiar o que não quer nada mais que voltar aos seus velhos hábitos.
Não te conheço. Nem nas palavras te encontro, entender que se vê em falta ou mistério tal que não se coaduna com a realidade que venho carregando aos ombros.
Não te conheço. Ainda que o contrário se afirme, tão para além de mim que não sei por onde encetar o desembaraço, que tanto me vejo pensando, talvez não seja meu o papel.
«Então, vá, malta, se me puderem dar a palavra só por uns minutos» — interrompe uma voz na outra ponta da mesa que ocupa quase o salão inteiro. Já deve estar na hora. Baixam-se os copos e as conversas íntimas que se vão tendo aqui e ali, e a música de fundo quase já não se ouve, como que se a abrir caminho para o discurso que se avizinha. — «Obrigado. Eu queria fazer um brinde a estas duas crianças apaixonadas que nos juntaram aqui hoje, e, hum, escrevi umas palavras para tentar não me esquecer de nada» — desdobradas e desajeitadas, numa folha de papel que saca do bolso do seu casaco de fato. — «Parece que foi ontem que este menino veio ter comigo a um café ao final de uma noite, depois de um encontro com uma rapariga que tinha conhecido na semana anterior. Aspecto de alguém que estava completamente perdido para a vida. Ainda pensei que lhe tinha acontecido alguma coisa de mal, mas quando ele começa a falar, a única coisa que me consegue dizer é, e passo a citar: "Acho que é ela. Acho que conheci a mulher da minha vida". Ri-me tanto nessa noite. Não te escondas! Ele não tem coragem para admitir, mas estou cá eu para o lembrar destes tesourinhos. Ele depois continuou a falar e parecia que estava a descrever um anjo, o vestido às flores estampado, os cabelos dourados ao vento, os olhos que o deixavam à deriva quando se cruzavam com os dele. Quem diria que estaríamos aqui passado um ano, e que essa rapariga seria agor—».
Aproveitei a primeira oportunidade para escapar despercebido com o meu copo a caminho do jardim; mais fácil quando ninguém me reconhece na multidão. Fechadas as portadas de vidro, a voz tornou-se pouco mais que um ruído inteligível, já tão longe de mim e da dor que me causa. Cheiro a relva e gotas a pingar das lâmpadas que penduradas iluminam de forma tão suave os muros de pedra e os sobreiros da quinta. Má sorte para eles, talvez as nuvens estejam do meu lado hoje. Que horas são? Acho que já fiz a minha parte com acenos e conversas banais para justificar ter vindo. Ela não vai dar por minha falta se for agora embora. De que é que estava à espera, sequer? Merda. Não. Não vou por aí. Eu sabia. Não estava à espera de nada. Um sorriso, os parabéns, sentar-me e aguentar meia dúzia de horas como um adulto responsável, sem me desfazer em pedaços ou fazer figuras a olhar pelo fundo de uma garrafa. Ficar contente por ela. É isso. Ela está feliz. Ele deixa-a feliz. É isso que importa.
— Não estava à espera que viesses.
Uma voz sentada no canto do olho, e uma figura mutuamente conhecida que já não me lembrava ver. O grupo inseparável que éramos. As conversas parvas que tínhamos todos os dias sobre assuntos que não interessam a ninguém. No fim, depois da vida acontecer, cada uma segue o seu caminho, as linhas destinadas a cruzar-se nestas ocasiões ou noutras menos felizes.
— Nem eu. Estou a pensar que se calhar não devia ter vindo. Mas ela convidou-me. E eu vim.
— Faz sentido. Estás a gostar da festa?
A adorar. Ouve-se um riso solidário de ambos os lados para a pergunta que foi feita apesar de se saber já a resposta.
— Estás-te a aguentar, pelo menos? Queres desabafar um bocado?
Há um banco numa estação no meio do nada. Digo, literalmente no meio do nada. Tem uma linha que segue apenas numa direcção, um coberto para aqueles dias mais chuvosos - com o resguardado banco mencionado por baixo - e em volta, toda uma enorme ausência de tudo o que seria normal de se ver na paisagem envolvente. Nada é... nada. Zero. Vazio. Ou azul; eu gosto de azul. Mais romântico e tudo, os dois sentados algures num mar de azul, à espera da carruagem que os leve até ao seu destino, seja lá esse onde for. Juntos, talvez, mais pitoresca a fotografia se encaixar. O estado dos carris não inspira a maior confiança, a madeira como está, a natureza a retomar o que é seu, mas a esperança é... a verdade é que a esperança é um pouco aborrecida, e é melhor não a mencionar não vá ela causar mais problemas. Digamos apenas que se aquela placa com previsões estivesse a funcionar, possivelmente não apontaria para o mesmo ano que o nosso; que os relógios já se cansaram todos entretanto e que já não há mais tempo para ninguém.
— Hum. Posso-te fazer uma pergunta estranha?
Olhos que não descolam do lápis que se arrasta de um lado ao outro da página. Joelho como cavalete, e um céu que se preenche lentamente em tons de cinza. Ouve-se uma espécie de grunhido como que se a dar luz verde ao disparo.
— O que é que achas que vem aí?
— Um comboio?
— Está bem, e como é que achas que ele vai ser? Grande, pequeno, antigo ou moderno... se eu tivesse de apostar, diria que vai ser a vapor. Pelo aspecto deste sítio. E tu?
— Eu não sei. Faz diferença?
— Não. É só que... nós não sabemos onde estamos, não sabemos como é que viemos aqui parar. Não fazemos ideia se vem aí alguma coisa, ou quando é que vem; para onde é que vai, ou se vamos os dois para o mesmo sítio. Estamos à espera, mas, à espera do quê, mesmo?
A pausa é suficiente para assentar a questão. Uma mão que não pára, e uma resposta que se atrasa um pouco.
— Não sei.
— Sim, eu também não. Chateia-me um pouco não saber.
— Sabes que não te vale de muito. Não temos outro remédio senão esperar. Eras mais feliz se arranjasses alguma coisa para te entreter, nem que por um bocado.
— Como tu, com o teu caderno os teus desenhos infindáveis do mesmo céu? És feliz assim?
Outra pausa. Desta vez com um suspiro profundo com vista para o horizonte, daqueles que se arrastam de propósito com desdém evidente. O lápis já não se move. Os olhos falam por si.
— Então porque é que não te chateias também?
— Porque não há nada que eu possa fazer! Já fomos para um lado e já fomos para o outro, e todos os caminhos vieram dar aqui. Sim, é frustrante não saber o que raio se está a passar, pensar que podemos estar à espera de uma coisa que pode nunca vir, mas se a tua sugestão é entrar em parafuso e ficar a pensar apenas nisto, eu fico-me pelo meu caderno.
— E ele deixa-te feliz?
— Mais feliz que a alternativa, sim. Eu sei que estás a tentar dar a volta ao que eu disse. É uma pergunta minada.
— Minada?
— Sim. Ninguém é feliz, não no verdadeiro sentido da palavra. Pergunta a quem quiseres. Nós não fomos feitos para isso. Vai sempre haver alguma coisa que nos vai deixar ligeiramente insatisfeitos. Alguma coisa que nos vai fazer não saber a resposta à pergunta; e quando não a sabemos, ela é óbvia. É quem somos. Faz parte de nós. E é por isso que temos de aproveitar as coisas pequenas. Eu tenho o meu caderno, e tu devias encontrar alguma coisa parecida. Pelo menos para ajudar a fazer o tempo passar.
(...)
A noite já vai longa, e a neblina matinal que agora se levanta vê-se tingida por quem espreita no horizonte, tímido como ninguém. O leve rebentar das ondas define um silêncio característico, uma atmosfera singular que é cortada apenas pelo choro das gaivotas que atentos os teus olhos acompanham. Se não houvesse no mundo mais vida para viver, acreditaria sem questionar que bastaria este momento, com sombras laranjas pintadas no teu rosto e todo o universo a teus pés.
Fogem-te pensamentos na tua notável indiferença para com tudo aquilo que se mostra afastado da pequena bolha que criaste para ti. Nada te afecta, e nada te move. Há algo difícil de qualificar no modo como esta paisagem te absorve. Uma beleza intangível que a tua complementa e da forma mais natural possível te transforma em parte do cenário. A fotografia que não existe sem ti.
É vertiginosa a distância a que estás de tudo aquilo que não és tu, ou talvez só de mim numa miópica perspectiva de um coração que tanto me aperta quando se vê lembrado da tua figura. O calor que as mãos não sentem e as palavras que não podem sair. O receio de que um passo em falso possa vir a narrar uma outra história, uma em que não estás mais aqui e em que me obrigas finalmente a acordar para uma qualquer outra cor de que pouco me interessa.
É esta a fronteira que nos separa. Um pitoresco momento que se vê fingido em alternativa ao romance que não inventámos para nós. Talvez isto baste. Há felicidade aqui, se procurares, e aguento-o o tempo que for preciso até dares com ela, longe de mim, ou longe de nós.
Porque é que não lhe perguntas? Medo? De quê? Tenho quase a certeza que ela não te vai morder. Quer dizer, sabendo quem é, não ponho as mãos no fogo nem nada, mas, ahm. Anda, estou a brincar. Pensa assim - qual é a pior coisa que te pode acontecer? E então? Achas que estás melhor como estás agora? Olha, está bem, se tu não a convidas, convido-a eu. Pode ser?
És mesmo cego. Ela gosta de ti. És a única pessoa no universo inteiro que ainda não se apercebeu isso. Porque é que havia de te estar a mentir? Enfim, acredita no que quiseres. Não te percebo às vezes. Para alguém que parece ser tão inteligente, tens uma cabeça-dura...
Tentar uma coisa diferente, então. Imagina-te daqui a uns dez anos. Canudo na mão. Trabalho qualquer. Uma outra rapariga a teu lado que gosta de ti. Talvez gostes dela também. Ela é bonita, ouve as mesmas bandas estranhas que tu, talvez isso chegue. Estão a viver juntos num pequeno apartamento alugado nos arredores da cidade. Volta e meia vocês falam de um futuro juntos - ter filhos, comprar uma casa, esse tipo de coisas - mas ainda é cedo para ti. Ainda há muito que queres fazer antes disso. Visitar outros países, ou viver sem todas essas preocupações enquanto és novo.
O que interessa é que, ao final do dia, és feliz. Às vezes. A verdade é que não sabes muito bem o que é que isso significa. Há noites que ainda sonhas com ela. Há dias que gastas a pensar, o que é que estou a fazer? É confortável, pelo menos. Se olhas à tua volta, vês tantas outras pessoas a levar uma variação da tua vida, por isso não podes estar assim tão longe da razão.
Mais dez ou vinte anos. Não sabes onde estão os teus amigos. Casaram-se, tal como tu, e esconderam-se num sítio qualquer. Dois filhos - um menino e uma menina. Ela com algumas parecenças contigo, coitada. E eles são luz da tua vida. Já esqueceste a ideia de ser feliz - cabe-lhes a eles essa responsabilidade, agora, contigo a ajudar. A ti, e à pessoa a teu lado. Essa, que mudou já tantas vezes. E tu? Todos os teus sonhos e aspirações. Todo o teu ideal sobre um grande amor. Não és já a mesma pessoa.
Quando fechas os olhos, à noite, e sussurras bem baixinho para que a lua te leve de volta, apercebes-te que não era bem isto que querias para ti. Já vais um pouco atrasado. A tua boleia já partiu. Um dia de cada vez, e ficaste a ver a vida passar sem sequer dares por ela. O desejo de voltar atrás, até onde estás hoje, para tentar algo de diferente.
E aqui estás tu. Ouve, eu sei que isto é parvo. Eu sei que pode nem sequer ser aquilo que te espera à medida que fores seguindo o teu caminho, mas não vivas atormentado pela ideia daquilo que podia ter sido. Há poucas coisas tão dolorosas quanto olhar para trás, passado um tempo, e pensar - e se?
Por isso, faz-lhe lá o raio do convite. Se não for para ser, não é, mas ao menos ficas com essa certeza.
Corre o Ceira a meus pés enquanto me escondo de ti. A intensidade das sombras atraiçoa o cair da noite, e os chuviscos que ele arrasta distorcem o teu nome no ecrã preto que não pára de tremer. Sinto que já aqui estivemos. Grades à volta, num sítio fácil de encontrar enquanto me afastava de todo o barulho e agitação, com a força que deste aos teus sapatos para que eu te ouvisse chegar.
Não faço ideia porque é que vim quando nem gosto destas coisas. E tu, com a tua chegada tardia, trouxeste contigo todo o imaginário de que me queria afastar durante uns dias. A culpa não é tua. Sou eu. Sou sempre eu. Que raio. Não havia nada mais interessante do que me juntar à fila de rapazes apaixonados por ti?
Vou-me levantar. A roupa já acusa o peso da chuva, e isto não me leva a lado nenhum. Da ponte para cima, a seguir o caminho até ao edifício já meio delapidado onde vamos dormir, e onde te encontro sentada, à minha espera. Ainda me lembro da tua figura. Do teu olhar. Juro que por momentos pensei que não me ias deixar ver a luz do outro dia.
Eu não te percebo. Não imaginas o quanto me preciso de conter para não mandar Platão pelos ares e quebrar todas as regras que existem à face da Terra, mas no momento em que rompo o silêncio sem saber bem o que dizer, eu lembro-me de ti. Lembro-me da pessoa que eu não sou, e escorre-me a coragem com a água que vai caindo do céu.
Talvez à noite. O frenesim à nossa volta em busca de isto e daquilo, e nós num mundo completamente nosso, a falar e a falar. Para aqui, ou para ali, com a ocasional interrupção, mas falámos tanto. Guardo este como um dos momentos em que gostava que a minha memória fosse um pouco mais gentil comigo. Imagino o quão caricato deverá ter sido para quem nos viu de fora. Que devem ter achado eles?
Não com um estrondo, mas com um gemido. O pano cai. As luzes sufocam, uma a uma, esticando o tapete a uma lúgubre escuridão. O silêncio. Tangível como nunca. E não se ouvem. Quase não se respira com a antecipação, e elas insistem em não chegar. Não foi bom o suficiente? Não mereceu os aplausos?
Foi isto?
Que horas são? Onde estou? Este sítio... já não me lembrava dele. Das cores; do cheiro. Caixas atulhadas de mim, escondidas - guardadas? "Não abrir". O olhar que era só teu. A fantasia e a inigualável dor. Aquilo que queima por dentro. Que arde. Perdoa-me o riso mas não o consigo conter, tinha-me esquecido do teu brilho. Da mão esticada, que não agarrei no momento certo. Embora, para ser justo, também te possa acusar do mesmo.
O que é que andamos a fazer? Branco, laranja, e, sei lá, todas as outras cores de todos os outros espectros. Estamos a escrever a nossa história como espectadores, audiência distante para autênticos lunáticos, e é hilariante. Somos crianças! Dois miúdos à deriva na imensa vastidão de um mar que não conhecemos, a recitar falas que não são nossas, a fingir que somos quem realmente queremos ser, porque talvez, só talvez, as coisas façam sentido assim.
Excepto que não fazem. Ambos sabemos que nunca vão fazer. Este mundo não foi feito para isso. Tantas luzes, tanto aparato - e para quê? É tão simples. Somos nós. Somos só nós. Não há nenhum manual que nos ensine a ser quem somos. Podemos ser o que bem entendermos. Se quisermos, até podemos não ser. Porque é que temos de andar sempre atrás daquilo que faz sentido?
É que este mar? Ele sempre foi nosso, e nada vai mudar isso. Não interessam as travessias, o rumo, ou seja lá o que for. Tal como somos quem somos, ele é o que é. Se faltar; se alguma vez deixar de o ser, então, a culpa não será senão nossa.
E é-a tão claramente! Não sei quem deixou duas crianças a cargo de algo tão importante, mas estaria à espera de outra coisa? O certo é que já não vem; o passado não volta e a deriva continua. Perdi conta de quem sou, de te ver, e imaginei-me de novo - sem ti, e sem tudo isto. Até que acabou. Atribulado, o regresso, desafiou o mundo e trouxe-me novamente aqui, à deriva, nesta imensa escuridão.
Aqui. Onde tu estás. De onde não saíste. Não faz sentido, e talvez seja melhor assim. É isso que é suposto se dizer, não é? A expectativa de que da metamorfose resulte algo que se encaixe nos padrões da normalidade. O importante; o importante é que o ponteiro continue a mexer, não se quer nada para além disso.
É mentira. É óbvio que é mentira. Não pela mentira em si, mas pela sua edificação como uma demente e deslavada esperança. É ela a única coisa que te faz abrir os olhos pela manhã, que te instrumenta a fuga da prisão que são teus sonhos, e é tão, tão frágil, que não ousas recitá-la por saberes não existir passagem de regresso.
Caminhas em bicos de pés em volta dela, e é assustadora a habilidade com que o fazes. Sabes exactamente onde pisar, e quando o fazer; movimentos praticados em quantos outros percursos? Já devias saber. Mesmo que te convenças do contrário, foi a tua volição que te trouxe aqui. E o que vês? O que te resta? Como sabes que é real?
Tal como és, neste momento, não acredito que saibas sequer o que isso significa. Perdido, e encontrado, mas as peças, quando tentas, não encaixam todas no mesmo sítio. São de outra pessoa, ou serás tu?
Sobra, no fim, a amálgama que se dá pelo teu nome. Irreconhecível, já há muito, exacerbado pelo teu consentimento e pela tua imensurável irresponsabilidade. Podias ter sido tão mais do que foste. Podes ser tão mais do que és. Mas, talvez.
"Talvez seja melhor assim."
Se não te chega, agora, toda a raiva e todo o ódio no mundo - se isto não te move, e te faz acordar de uma vez por todas - suspeito que não estarás cá já, e lamentar-me-ei por todos os que alguma vez ansiaram por algo de diferente em ti.
Numa outra realidade, há muito tempo atrás, o homem que destruiu o mundo fê-lo não por ódio ou algo similar, mas por se ver ausentado de uma alternativa. Para ele, e quiçá se apenas na sua incontornável limitação, aquele terá sido o único rumo possível. Os destroços de tão incompreensível destruição roeram tudo aquilo que restava dele, e o mundo que construiu de volta - na imagem da sua melhor memória - existiu, é certo, mas a que custo?
Já não há nada em mim para celebrar; lá nisso tens razão. Sou uma sombra de mim. Da ideia de tudo aquilo que podia ser, ou que outrora fui. Mastigado. Cuspido de volta. Amassado por tudo aquilo que é normal, e expectável, e bom, e certo. Deformado e embalado num pacote que cumpre todas as normas; fácil de rotular, fácil de usar, fácil de arrumar quando não for mais preciso. Roeu, e roeu, e roeu, até não haver mais tutano, carne ou osso, até o espelho não mostrar imagem mais e até não ser possível conhecer-me para além desta contorção de mim.
O custo fui eu. A culpa foi minha. Aquilo por que não se luta, que não faz sentido, que não se merece, que não se discute e que não se questiona. As vozes que não se calam. As lágrimas que não param. E eu estou farto. Estou tão farto disto.
O destino é evidente, a sua observação opcional, e garanto-te que não ficarei cá para apreciar os foguetes. Este mundo - esta coisa que construímos com pedaços de nós - implodindo, não tem qualquer remendo. Já basta este insuportável negrume para perceber aquilo que aí vem, e não contes comigo para os créditos.
O módico de clareza que o fim transporta consigo é a sua única benesse. Atendidas as deambulações de uma sombra cansada, não há mais nada aqui. Não há outro caminho senão para cima, para fora deste sítio que roubou já mais do que o suficiente de mim, e conto todos os segundos que faltam para deixar de os contar.
Ainda assim, e depois de isto tudo, não consigo deixar de o fazer. Todos queremos ser felizes, seja lá o que isso for, da forma que o for, custe o que custar e doa a quem doer. E ao final do dia, é só isso que interessa, não é?
Bah.
Estás contente? Era isto que querias? Era esta a pessoa que querias ser? Quando te vês ao espelho, ainda a reconheces? Os traços estão lá, és parecido, és tão parecido, mas, não sei, não sei o que te aconteceu. Não sei o que te aconteceu...
É isto? Um ponto final, agora é assim, as coisas são o que são e pronto. Já devias saber, já devias saber há tanto tempo. Já te tinham avisado, não já? Agora aguenta. Segue em frente. Perdeste o que perdeste, e o prémio de consolação não és senão tu.
Parabéns?
Não, que se foda isto. Não quero nada disto. Não é para isto que estou aqui. Quero voltar, quero ser quem sou, deixa-te de merdas de uma vez por todas e deixa-me ser quem sou. É amanhã, é sempre amanhã, sempre amanhã, as coisas são sempre melhores amanhã, as coisas fazem sempre mais sentido amanhã, e que se dane o amanhã, não quero saber do amanhã, eu quero o hoje, o já, o ontem e todo o outro tempo que me roubaste de volta.
Se não faz sentido agora, que não faça, não interessa, não quero que faça sentido, as coisas são tão melhores quando não fazem sentido, quando são por ser, apenas, sem motivação, sem uma lógica parva por trás que se acha "fazer sentido". Se foi isso me trouxe até aqui hoje, passo bem sem fazer qualquer sentido enquanto houver ar nos pulmões e alento na alma, se é que o há ainda, se é que ainda não mo roubaste.
Aaaaaah, que parvoíce. Que frustração enorme. Estou a tremer de tão parvo que isto é. Foda-se. Chega. Chega, chega, chega. Porque é que as coisas não podem ser o que são? Sem entrelinhas. Sem mensagens subliminares. Sem "mas" nem meio "mas". Porque é que não podemos ser, simplesmente?
Já estou velho para isto. Não quero as tuas desculpas. Não as aceito. N-uuuuu-nca as vou aceitar. Não tenho espaço do meu lado com as que mandaste para trás, haja paciência.
Aaaaaah, eu não aguento. Tantos pontos finais fartam-me, e eu já estou farto demais, de uma ponta à outra da reticência. Quero o mundo de volta. Quero-o virar do avesso, vezes em conta, até não saber o que o avesso é. Até encontrar o eu que eu não sou, e que não faça pingo de sentido. Até esse momento despontar no infinito, no expoente máximo da parvoíce.
E — até lá, entretanto — acende lá o raio das luzes.
Não tens frio?
Posso-me sentar aqui?
Isto é bonito. Calmo. Costumas vir cá muitas vezes?
Não te incomoda a chuva?
Eu não mordo, sabes? Podes falar comigo.
Ou não - pronto, isso também funciona - falo eu então, não me vais ver a fugir de um monólogo.
Eu sei porque é que estás aqui, assim. Desculpa. A culpa é minha. Eu devia ter falado contigo há mais tempo. Devia ter percebido antes. Mesmo depois de perceber - ou, enfim, de me obrigares a fazê-lo - as coisas podiam ter sido diferentes. Eu podia ter sido diferente. Talvez não estivesses aqui agora, assim, com alguém à tua procura para fazer perguntas a que não queres responder, para dizer coisas que não queres ouvir.
Parte de mim acreditava que não faria diferença. Fosse o que fosse, nada iria mudar o que nós somos, de nada iria valer o esforço. O abismo que existia entre nós era assustador, e mais o era ainda a forma como este alargava com o correr dos dias. Parecia de chumbo cada passo que dava em direcção ao desconhecido.
É óbvio que não posso inventar o mundo de volta. Também não o posso virar do avesso para que tudo encaixe no sítio certo. Ainda assim, eu estou aqui. O resto vale o que vale, e sei que talvez não seja muito, mas pelo menos hoje, e mais do que nunca, eu estou aqui. E isso é mais do eu que posso dizer acerca das outras vezes.
Bem, em retrospectiva, nem foi um monólogo assim tão grande. Foi um monólogo-zito, vá.
Entretanto a chuva foi abrandando.
Já é hora.
Queres voltar?
Os passos curtos e a brisa leve, a agitação de fundo, a apagada vontade em algo que não, eu, e tu, nem a noite nos chega quando a lua se põe, quando o mundo inteiro gira em torno de si próprio, desfiando cautelosamente o seu eterno novelo. Este momento, esta colecção de segundos e palavras dispersas, perdidas, não é senão nosso, da nossa autoria e encargo; é ele que vemos quando fechamos os olhos e é ele que ouvimos quando a realidade nos escapa, para sempre, e cada dia mais distante. Mal me lembro de mim ou do caminho que nos arrastou, consola-me apenas saber que existiu, e que existe ainda, furtivo, num sítio que ambos partilhamos. Agora, volta, sem olhar para trás, sabendo inteiro o que se viu esquecido, olvidado por ausência de melhor remédio, e vive, somente, da forma que sempre o fizeste, da forma que o melhor conseguires.
Depois do fim não há nada. Nem luta nem sangue, nem lágrimas que despontam no lembrar de tudo que era e que já não é. Desfaz-se o branco num mar vazio, e pinta-se outra cor em rumo ao que ainda está para ser, numa travessia interminável que assiste ao seu fim antes de começar. Eis o abismo, aquilo que te consome nos melhores dos dias, que te transforma e te arrasta sem que te apercebas sequer que tudo acabou.
O caminho de voltar, ponto de fuga, existe somente em ti. A ninguém mais pertence o momento que precede o nada, tal como a ninguém mais recai a responsabilidade de o reaver. A culpa é tua. Os louros são teus.
Se existes ainda, acorda. Abre os olhos para o que te rodeia e para aquilo em que te tornaste. Não respires por reflexo. Um dia vais reaver o que perdeste, seja aqui ou noutro lugar. E um dia, talvez, encontrar-te-ei de novo, longe deste nada em que tu, só, és tudo.
Inunda-me um ruído imenso. Um burburinho insuportável de insignificâncias frágeis que se apagam quando lhes tento chegar, que me ofuscam os sentidos quando mais deles preciso. Incessante inquietação, quando a razão se vê desamparada face à ostentação do banal. Quando se abandona ao relento aquilo que outrora simbolizara tudo para quem pouco vestia.
Perdeu-se. Fecham-se agora os olhos para algazarras desenfreadas que tentam encontrar sentido onde este não existe. Onde este nunca existiu.
Haverá maneira de fugir?
Ainda estava calor. Ainda se ouviam os miúdos ao longe, a correr para trás e para a frente em volta dos aspersores que alguém se esqueceu de desligar. E a cada passo, pesava ainda a chuva da noite anterior. A realidade consegue ser tramada, quando quer, e era enorme o vazio que se fazia sentir. Um vazio insuportável. Um vazio consolador, por estranho que pareça. Antes um ponto final que um desfecho reticente.
Mas sabes, cada vez mais acho que não existe tal coisa. Que nada muda, e que nada acaba - pelo menos não da forma que insistimos em perpetuar. Andamos, mesmo quando julgamos estar parados. Sem rumo, à procura de um qualquer sentido, muitas vezes até andamos sem nós. É um vazio consolador, por estranho que pareça.
Acendem-se as luzes no céu, e ainda está calor. Passo a passo, caminho para aquilo que sei ser o fim. Para aquilo que me lembro como se fosse ontem, ainda hoje. Desisti. Continuei a andar. Andei até me esquecer que o fiz. Até não me lembrar do que me levou a fazê-lo.
Acho que não funcionou.
Esta coisa da poesia não dá grande resultado na vida real.
Porque se há um ponto final, porque nã... sabem que mais, esqueçam, isto tinha muito mais piada na minha cabeça. De qualquer forma, e para quem veio cá dar sem saber muito bem como (espero que não por questões do foro psiquiátrico), penso que uma breve introdução não será senão cortesia - o meu nome é João, e isto é um blog. O meu blog. Acho eu. A última vez que me meti em algo do género acabei por fazer o Voar em Terra, por isso não me vão apanhar com as mãos no fogo.
E este blog não tem título. Fosse eu mais dado à poesia, diria até que a ausência do título poderá ser compreendida como o título em si! Não? Não. Chamem-lhe falta de inspiração, preguiça, ou simplesmente sabe-se lá o quê, cada vez mais tem-se tornado difícil desencantar títulos decentes para as coisas. Para além do mais, quem é que disse, afirmou, ou declarou veementemente que tudo tem que ter um título? E por que motivo!?
Para ser mais fácil de identificar e memorizar?
Está bem, talvez tenha o seu quê de sentido.
Seja como for, não interessa, já está decidido, e o que está decidido está decidido. Aposto que um gnomo já apontou na sua caderneta que este blog não tem título e tudo, por isso - digamos que é o que é, e deixemos que o seja. Pelo menos por agora. Já disse que não me vão apanhar com as mãos no fogo por isto, não já?
Entretanto, estejam à vontade, arrastem uma cadeira, peçam um fino e um pires de tremoços ali ao António (o gnomo com a caderneta lá ao fundo a limpar as mesas), e fiquem para ver o que aí vem. Não sei bem o que será, mas aposto que vai valer a pena.
Quanto mais não seja, finos e tremoços valem sempre a pena.
Pensei que te tinha perdido. Faz tanto tempo, e pensei mesmo que te tinha perdido. É imensurável o vazio que não se vê mas que se sente, que manifesta à mínima ocasião. Um porquê, um sei lá ou um pensamento que se arrasta demais numa amálgama de pretextos que ambos sabemos fingidos. Aquilo que foge de quem lhe tenta chegar. Que se esconde nos locais mais inoportunos. Que rói. Que nunca pára de roer.
Agora que te encontrei – ou que simplesmente te deixaste encontrar – o que é que vai acontecer? O que é que vais mudar? Serão demais as esperanças para tão pungente realidade? Será que interessa? Ainda assim, afaga-me a mente essas minhas divagações; talvez o interesse esteja exactamente na sua ausência. Elas são não mais do que são. Talvez isso baste.
Respirava, uma e outra vez. Vivia, apesar de tudo, abrindo os olhos para o espectáculo de luzes que podia agora admirar livremente a cada passagem da lua. De braço estendido até ao céu, sentia o ar a escapar de si quando cerrava o seu punho, o inerente vazio de tudo aquilo que não conseguia alcançar e a insuperável distância entre os seus desejos e a sua compleição. Se não era tristeza, mais o era uma letárgica apatia de uma realidade que embora não se furtasse, revelava-se um tanto pesada demais para abrigar.
Ninguém lhe havia desejado tal destino – tão abominável encargo não coube senão a ele próprio. Ele era, Livre, no seu julgamento turvado por toda uma incontrolável demência. Mórbidos eram os sonhos que o mantiam acordado durante noites a fio. Incontroláveis visões de coisas e de pessoas que jamais poderiam ter lugar no cenário envolvente. Ele existia, é certo, mas cada vez mais se questionava se o era, realmente.
No final, sabotado por quem mais confiança viu em si depositado, ele limitou-se a fazer única coisa que alguma vez soube fazer. O homem que destruiu o mundo, fê-lo não por ódio ou algo similar, mas por se ver ausentado de uma alternativa. Para ele, e quiçá se apenas na sua incontornável limitação, aquele era o único rumo possível.
Atentar os destroços do que havia sido outrora, que roem, por dentro, até que não haja mais dentro por onde roer, saber que os pés estão onde estão e que as mãos têm o poder que têm vale o que vale, o céu é o mesmo e o caminho inverso não é de possível travessia. Ele segue o que tem a seguir, faz o que tem a fazer, e respira, uma e outra vez, vivendo, apesar de tudo, porque construir um mundo novo não tão fácil quanto devia.
É um tanto burlesco, isto. O local, a pessoa, o assunto, seja lá o que for, o que mereça consideração a um determinado momento. As deambulações de uma sombra cansada de ela mesma não davam senão uma peça literária de génio caricato, e estou já um bocado farto de lhe fazer parte. Já chega. Não há mais nada para ver aqui. Ao menos nesse sentido fiz um bom trabalho. Ainda assim – o descaramento – no final disto tudo, existir pairada expectativa; burlesco talvez se revele eufemismo de mais alta categoria. E para quê! De que é que vale!? Ludibrias a lucidez com a maior das facilidades, parece que te é já uma segunda natureza! Sabes bem que há um limite para a tua fuga…
Aquilo que resta é nada. Do austero suspiro que outrora invadira tua alma, que te vestira e te honrara da melhor das formas, ou não por tua sentença, e quem és tu senão a réstia do furto de esse todo, de esse nada, quem és tu, afinal, sempre julguei que serias diferente, que as tuas feições viriam a narrar fantasias outras e contudo a realidade assim o é, e tu, que a segues, também, com desavindos tantos, apagas esperanças já de hábil forma mas não o fazes sem peso, o que custa largar és tu e por isso mesmo te pergunto novamente, quem és tu, ou, és o tu que querias ser?
Atraiçoa-me o sono, ainda agora. Fabricações de pavio escasso, inerentes ilusões e esperanças de dura cortada pela lucidez da realidade. É que ainda sinto o calor das tuas mãos nas minhas – mãos que não são tuas na verdade mas que o são em demasia. O sentimento associado, edificado por uma lógica sinuosa. E a sua reacção em mim. Há dias em que não sei para que é que fechei os olhos na lua anterior. Se tivesse sabido… e daí, talvez não. Talvez tenha valido o desapontamento, por mais passageira que tenha sido na sua natureza. Não sei. Não é de fácil resposta aquilo que muda consoante a alma que me possui a mim nos meus suspiros.
E passou já tanto tempo. Assumiria a posse de uma memória distorcida não fosse essa uma falsa assumpção. Não é esquecido aquilo que se ausenta voluntariamente. Aquilo que se aparenta deslembrar. Existem outras obrigações. Responsabilidades. A paralisação não é opcional para quem insiste viver, mas a deriva é inevitável. Quanto tempo pretendes continuar assim? Onde é que achas que vais acabar? Tens que fazer alguma coisa. Eventualmente, tens que fazer alguma coisa.
Por isso, hoje, mais do que nunca e nem que só para mim, és magia. Toda a beleza e todo o mistério do mundo concentrado num só local. Figura cujo sorriso dói um bocado demais e cujo olhar o acompanha. Aquilo que as mãos não conseguem segurar. Que a mente projecta nos locais mais improváveis. O sobressalto, o peso na respiração e a consequente efemeridade. A simples menção do teu nome traz-me de volta a uma realidade estranha.
Esta não é senão a verdade. Eu nunca senti por ninguém aquilo que senti por ti. Aquilo que ainda sinto, por mais que não queira. Mas já não somos crianças. Já não temos idade para supostos amores eternos e romances de meio dia. E é este o fim. Um adeus com um sorriso forçado. Um desejo-te de tudo o melhor, do mais fundo do meu coração. Espero que sejas feliz. Que tenhas uma vida feliz. Não mereces menos que isso. Não deixes que ninguém te diga o contrário. Não me teria apaixonado por ti fosse esse o caso.
Porquê? Tu sabes quem és, por isso, porquê? Já não é altura de parares de esconder toda a merda que está por baixo com um sorriso e um olá? Não te magoa fingires que és normal? Não te destrói por dentro? Tu não és como as outras pessoas – nunca serás – e quando é que te vai dar para aceitares isso?
Acorda
Os pensamentos que me assombram não são meus, não podem ser meus, são de alguém que me acompanha, alguém que não eu, alguém cujo desmesurado desengonço se aparenta de difícil controlo e, Custará assim tanto pensar, mas de que é que isso interessa, de que é que isso vale, porque é que não morres, continuas a existir, repugna-me inalar o mesmo ar que tu, e saber que és um entre muitos, inconsoláveis aberrações da natureza que negam aquilo de que prima a sua raça, porque é que não desaparecem juntamente com a obscena necessidade pela vossa inútil utilidade, rejeito comparações, carecem de significado suficiente para tais e, É essa megalomania, é ela, é isso, inerente superioridade de que se alimenta o teu ser, aceita-a, não a continues a negar, pela primeira vez na vida, sê quem verdadeiramente és.
Acorda
Nunca. Não por não ser real, mas exactamente por o ser em demasia. O que é que teria a ganhar? A verdade não interessa a ninguém. Não vivemos em tal mundo. Depois de tanto tempo a construir esta abstracção, esta plataforma de comunicação que se rege sob as ígneas regras sociais, não existe melhor solução.
Acorda
Ela existe, algures. Um ponto final marcado a ferro em paredes vertiginosas. Falta encontrá-lo, no entanto. Concretizá-lo. E já faltou mais para ser capaz de dizer, de uma vez por todas, “Fim”.
– “Quando?”
– “De hoje a oito dias… desculpa, eu…”
– “Pára. Por favor.”
– “Desculpa…”
A torrencial chuva que se fazia sentir desde manhã vinha apenas rematar a minha dor. Era palpável, agonizante, tal como a era a dela mas no meu egoísmo infantil dificilmente conseguia ver isso. As suas palavras haviam acabado de desmoronar o meu mundo, e as minhas fantasias idiotas acerca de um futuro juntos tornaram-se nada mais que isso – fantasias, sonhos que se aportaram outrora e que desapareceram com a mesma rapidez. É incrível como as coisas mudam de um momento para o outro. Em meros minutos, sumiu qualquer vestígio do sorriso que carregava imbecilmente na cara depois de ela me ter dito para ir ter ao parque, afogado entre incontáveis poças e pegadas lamacentas, e a única coisa que me surgia agora era o quanto eu odiava este lugar.
Eu fugi. Tão rápido quanto pude, eu fugi. Nunca corri tanto na minha vida. Talvez estivesse a tentar ultrapassar a realidade que se impôs, ou talvez simplesmente as minhas lágrimas, não sei. A única coisa de que estava seguro na verdade era de que lá não podia ficar, o peso era insuportável muito para além do meu limite.
Quando dei por mim estava no chão. Escorreguei num sítio qualquer. Olhei à minha volta numa tentativa de perceber onde estava. Se ela me tinha encontrado. Era o parque, ainda, e negativa era a resposta à segunda pergunta. Não sei porque é que o queria. Depois de ter fugido, porque é que ainda assim me magoou mais o facto de ela não estar ao meu lado. Quanto tempo é que estive aqui? A lua mantia-se visível através da densa folhagem e a chuva não dava indícios de cessar, não deve ter sido mais de que um quarto de hora desta noite que se aparentava interminável.
E ainda estou a decidir se o encontro no seu brilhantismo ou na sua depressão. É tudo tão dolorosamente transitório, tão desprovido de qualquer significado tangível, que começo a aperceber-me que é aí que está o verdadeiro charme das coisas. Os opostos potenciam-se de tal forma que se tornam inseparáveis, e essa realidade não é senão deliciosamente irónica. Aproveita-o enquanto o tiveres, mas lembra-te que também é importante não o teres, não te esqueças disso, está bem?
Não sei, às vezes é tão fácil fugir, dá impressão que apreciamos o absurdo ou simplesmente tudo que ele envolve. É que não existem soluções no fundo desse copo por mais de ti que esteja nele ou dele em ti, tal como não o existem em palavras ocas ou lágrimas sentidas, emoções falsas ou memórias perdidas, e eu estou farto de fingir e não quero cometer o mesmo erro que tu. Não vou mentir e afirmar que as coisas não mudam, a ingenuidade e a inocência não me atingem assim tão forte, mas a verdade actual é esta e, não sei, talvez ela valha de alguma coisa. Lamento as implicações a quem me compete, mas também não vou mentir e afirmar que as coisas mudaram, não sei, é de mim, eu sou parvo assim.
Ele não vai passar da meia-noite por mais que fiques a olhar para ele, assim o fizeram, é defeito de origem. Defeito intencionado, é certo, mas admito que me fazia perder a noção do tempo ao início. É uma questão de hábito. Hás-de lhe apanhar o jeito, eventualmente. Mas conta-me, estás perdido? Fazes a mínima ideia de como vieste aqui parar? Imagino que estejas a estranhar a tela branca, o inerente vazio, mas acredita quando te digo que não há nada mais natural que isto. Esta sala, este espaço, ele torna-se reconfortante se lhe deres uma hipótese. Onde estás? Não te vou responder a isso tanto quanto não o consigo fazer, estás em lado nenhum, estás em todo o lado, e no entanto o que vês são quatro paredes brancas e um relógio que julgas defeituoso. Confirmo-te no entanto que não estás morto, seria necessária uma história menos digna para descer a tal banalidade, e espero honestamente que não tenha sido essa a impressão com que ficaste da tua situação.
Não não, tu estás num local singular, se é que lhe posso atribuir essa designação. Ele é o que fizeres dele – num momento estás aqui, noutro estás num sítio diferente onde a lua reina e a chuva se sente, recolecção familiar tua, suponho. Não existem limites para além de ti, se bem que se admita, e não me leves a mal, que já esses são de dimensão considerável. Podes fazer o que quiseres, mas tem em mente que os ponteiros daquele relógio irão continuar sem se mover. É meia-noite, não te esqueças disso.
Quem sou eu? Também não o sei, o simples acto de existir sacia-me a vontade e nunca lhe dei grande importância, eu sou eu, não necessito de mais. Talvez mais pertinente seja a questão, quem és tu? Mas não te massacrarei sabendo já as razões que trazem pessoas a este lugar. Já fiz demasiados discursos acerca da futilidade dos vossos assuntos para saber que de nada servem, por isso, e simplesmente, diverte-te, faz tudo o que tens a fazer, a partir deste momento este mundo é teu juntamente com toda a responsabilidade associada ao mesmo.
Apenas, tenta não te perder. Tu sabes quem és, ou pelo menos deves ter alguma noção de ti, não largues isso. Há consequências para as tuas acções, nem que sejam para contigo mesmo, e não é algo que devas ignorar. Talvez um dia decidas continuar. Voltar. Ou porque te cansaste ou por qualquer outra razão, não sei. E nesse dia vais perceber o que te estou a dizer.
Até lá, boa sorte. Ou, não sei, diverte-te. Vou ficar à tua espera. Espero que ainda te lembres de mim então.
- Irrita-me ter vontade de escrever mas sem saber sobre o quê, passar horas a ponderar assunto ou a procurar luz em coisas aleatórias, e maior parte das vezes acabar sem qualquer resultado;
- Irrita-me ter que ouvir a mesma música durante horas a fio (no actual caso sendo esta) numa tentativa parva de tentar manter intacta a inspiração que me atingiu inicialmente e que me fez pegar na metafórica caneta e papel;
- Irrita-me o sol e o Verão, ou talvez simplesmente o calor, porque eu não serei eu sem ser do contra;
- Irrita-me o facto de pensar demasiado nas coisas, ao ponto de me imobilizar devido ao medo que todas as minhas previsões negativas se concretizem e eu fique num local menos feliz;
- Irrita-me saber que tenho razão em o fazer muitas vezes;
- Irrita-me mais aperceber-me depois que não a tenho;
- Irrita-me a estupidez, tanto própria como alheia, as acções sem sentido e as palavras inúteis, não me falhando aqui o ligeiro trago a hipocrisia;
- Irrita-me não me saber controlar em alturas desapropriadas e o oposto nas situações contrárias;
- Irrita-me não conseguir aproveitar o momento devido a reminiscências patetas, ou pior, devido a devaneios desadequados acerca de coisas que apenas acontecerão no futuro, se o acontecerem de todo;
- Já disse que me irrita aquela música?
- Irrita-me querer alguma coisa e não fazer nada para o/a obter, sempre preso a um ideal de preguiça ou de sobre-ponderações recursivas que me levam a lado nenhum a uma velocidade estonteante;
- Irrita-me não querer nada quando me perguntam, “O que é que queres?”, embora me irrite mais quem me faz essa pergunta;
- Irrita-me o prevalente diletantismo (eufemismo, talvez?) do qual não me consigo despegar;
- Irrita-me ver-me incapaz de ler metade das coisas que quero ler e capaz de ler tudo aquilo que não quero, Cosmos, há quanto tempo por aqui pairas!
- Irritam-me as expectativas que as pessoas têm de mim, não por maldade mas simplesmente porque sim, dispenso a responsabilidade inerente às mesmas, aquele bichinho que está sempre lá a dizer que aquilo ainda não está bom o suficiente;
- Irrita-me não fazer metade das coisas que digo que quero fazer;
- Irrita-me saber que já desperdicei demasiadas oportunidades, e que o continuarei a fazer para sempre no futuro;
- Irrita-me desiludir quem quer que seja, excepto a mim próprio, talvez seja o único que não espere absolutamente nada de mim, hah;
- Irrita-me estar a começar todos estes pontos com a expressão “Irrita-me” (exceptuando um, vá), imaginar a excruciante leitura disto e a eventual tortura que será fazê-lo em voz alta;
- Irrita-me não saber escrever tão bem quanto gostaria, assim como outras milhentas coisas de que pouparei o pobre coitado/a que está a ler isto de enumerar aqui;
- Irrita-me saber que daqui a uns anos vou achar que metade do que disse ou escrevi é uma enorme parvoíce resultante duma efémera e ignóbil juventude;
- Irrita-me aperceber-me que já não sou uma criança e que já não tenho 15 anos;
- Irrita-me ser mal compreendido, não gosto de confusões que podiam muito bem ser evitadas com o mínimo de esforço;
- Irritam-me esperanças parvas sem qualquer sustento;
- Irritam-me mais as pessoas que se agarram a elas (do género, eu);
- Irritam-me pessoas que não pensam por si próprias, e que deixam tudo para outrem;
- Irrita-me a ausência de esforço, consideração, somos todos por todos, à falta disso deixaremos de nos achar humanos, digo eu;
- Irrita-me mesmo mesmo mesmo a sério estar-me a distrair de 5 em 5 minutos com coisas aleatórias provenientes dos tubos que tão cheios de gatos e imagens menos apropriadas estão, tenho que começar a fazer alguma coisa acerca disto;
- Irrita-me não ser quem quero ser, não estar com quem quero estar, não estar onde quero estar, estou bem onde não estou, ou é um espaço impossível numa referência mais contemporânea;
- Irrita-me ir avante com soluções estúpidas mesmo sabendo que são estúpidas;
- Irrita-me quando não faço o contrário;
- Irrita-me dizer que não quando quero dizer que sim;
- Irrita-me sentir inveja de quem quer que seja, seja pela razão que seja, sentir-me menor por causa disso, ou pior, até pseudo-deprimido;
- Irritam-me pessoas falsas, incapazes de se aperceberem de quem realmente são e de perceberem que nem todos são tão cegos quanto elas;
- Irrita-me continuar a sentir o mesmo por ti e continuar sem fazer nada, andando para a frente ou não, mantendo-me numa semi-estase da qual me custa sair e de onde só me saem estes textos estúpidos em dias;
- Irrita-me manter uma fachada de uma personalidade e uma fachada de uma conversa quando na verdade o que quero ser ou dizer é algo de completamente diferente, simplesmente para manter um suposto status quo que alguém se dignou a estabelecer numa certa altura da linha temporal e que eu, aparentemente, não posso senão obedecer;
- Irrita-me não saber quanto mais devo escrever para que seja suficiente, para que não fique com mais nada a dizer de tudo aquilo que quero dizer, não é que queira ser uma página aberta mas às vezes parece útil, talvez assim alguma coisa mude assim, ou quiçá alguém leia, até;
- E irrita-me isto, já, com licença.
Isto polui-me a mente, impede-me de raciocinar, o que raio é que estás a fazer, do que é que estás à espera, recursividade insuportável de atitudes e pensamentos que se revela quase impossível de evitar, eu apercebo-me dela, eu apercebo-me dela mas o que é que posso fazer, não é como se não houvesse alguma razão por detrás da mesma, não é como se ela não fizesse parte de mim, deixa-me louco, sim, mas parece que é já rotina, evidenciada fraqueza de carácter de que tanto tento fugir, quero ser quem não sou, diferente, talvez melhor ou pior, não sei, mas diferente, talvez assim as peças se encaixem e se movam, não sei, é frustrante, para dizer o mínimo, estou farto de mim, e é de solução fácil, no entanto, quiçá demasiado fácil, talvez me falte coragem, talvez me falte algo mais, e é suposto ir à procura, é suposto encontrar?
Mal me permites o sono nessas alturas. Já quase passou um ano e ainda me lembro como se fosse ontem, as mais inúteis palavras e os mais minutos pormenores, irrelevâncias frustrantes de uma memória que insiste não dar folga a um espírito desencontrado, é pesado, é demasiado pesado, apetece partir alguma coisa, destruir alguma coisa, sei lá, talvez a dor resultante se equipare ao tamanho do sentimento que reinava então, sei lá, eu já nem sei o que pensar, e muito menos se alguma vez o soube, eu via o que queria ver, o que tinha aceite há muito e criado numa tentativa de fugir a uma aparente iniludível verdade, admito, não posso passar sem o fazer, como era eu suposto enfrentar a realidade de outra forma, a minha mente quebraria e este sítio ficaria às escuras, não lhe consigo imaginar outro resultado, que poderia eu ter feito senão o que fiz, tu tantas vezes chegaste perto de confirmar tudo aquilo que eu não queria saber e que poderia eu ter feito se não o que fiz, não me orgulho de mim mas também não recolho arrependimentos, quem sabe se poderia ter sido diferente, quem sabe se poderia ter sido pior, não arriscaria o que tenho agora para provar a validade de tal possibilidade, o que me circula no pensamento é demasiado valioso para o fazer, “eu amo-te”, “eu amo-te”, “eu amo-te”, frase repetida a um expoente louco, o eco vai perdendo a força original mas é rapidamente substituído por centenas de outros e isto não é algo que vá mudar, não é algo que eu queira que mude, desgraçada compleição a que não me permite tal vontade mas é com ela que eu existo, para bem ou para o mal é com ela que eu existo, irremediável devedora de horas e suspiros em algarismos demasiados, tal como tu, curiosamente, e já quase passou um ano, embora na verdade tenham sido bem mais, eu não me esqueci, eu nunca me vou esquecer, deste significado a algo, a alguém insignificante, como raio é que alguma vez me poderia esquecer disso?
Já estás aí há imenso tempo, o que é que estás a fazer? A pensar? Em quê? Hum, nunca imaginei que também te preocupasses com essas coisas. Não sei, pareces sempre tão distante, tão dentro do teu próprio mundo, às vezes esqueço-me que és como nós. Oh, não me leves a mal, não te estou a insultar nem nada, não é essa a minha intenção. É verdade que és um bocado diferente do habitual, mas isso não é propriamente mau. É quem tu és, é aquilo que te define, não te tens que te sentir mal por isso, desculpa se fiz passar essa ideia. De qualquer forma, ainda falta muito tempo até lá, devias aproveitar o que tens enquanto isso. Bom, admito que há dias em que também me sinto assim, mas acabo sempre por chegar à conclusão de que isso não me serve de nada a não ser que arranje maneira de fazer aqueles ponteiros parar, e a realidade é que essa solução ainda não me surgiu. Por isso, anima-te? Não sei, por outro lado também não desgosto de me sentir assim. É um bocado mais real, sabes? Aperceber-me que estou aqui, e que as coisas têm o mínimo de importância, é um bom contraste para todos aqueles momentos que passamos a ter conversas vazias com pessoas que pouco nos interessam numa tentativa de fazer algo chegar mais rápido ou mais lento. “Mais um pouco, é só mais um pouco”, e aguentamos até ao fim com um ligeiro sabor a melancolia na boca… vês, não és só tu que és um bocado diferente do habitual! Anda, está tudo à nossa espera e eu perdi a noção do tempo com esta conversa – mas olha, daqui para a frente, se precisares de alguém com quem falar ou algo do género… seja sobre o que for, não sei, podes vir ter comigo, eu não me importo… está bem?
Eu não sei se alguma coisa mudou. Se o quero saber caso se confirme. A imaginação dói um bocado demais e o silêncio não ajuda, por isso permite-me o devaneio. Isto é um bocado diferente do que eu estava à espera. Eu sou um bocado diferente do que eu estava a espera. Não sinto falta de metade das coisas de que antecipei outrora. Arrisco dizer até que não sinto falta de quase nenhuma. É estranho. É imensamente estranho. Mas há algo que se manteve. Que não se alterou desde há já tanto tempo. Esse algo és tu. Ou melhor, é o que tu és em mim. Não há dia que passe sem que pense em ti. Mas eu sei que isto soa mal. Eu sei que estas palavras têm apenas o valor que têm. E eu sei que as coisas podem já não ser iguais. Contudo, pareceu-me importante que o dissesse. A imaginação dói um bocado demais e o silêncio não ajuda, e pareceu-me importante que o dissesse. É só.
Desliga-te, fá-lo nem que só por uns breves momentos, que isto já cansa, esta pressão, este constante desassossego, e nunca foi este o objectivo, tamanho desaprumo, haja saúde, mas de nada vale o alento agora, não por agora, por isso guarda-o, leva-o para um sítio que só tu conheças, vais precisar dele um dia e vais ver que esse dia vai chegar rápido demais, ou quiçá não o suficiente consoante a alma que te possuir nos teus suspiros, tudo tem uma razão de ser, era isso não era, as paisagens não se confundem e é possível concebê-lo à sua própria maneira, eu acredito nisso, apesar de tudo, portanto tenta fazê-lo, esquece tudo aquilo que existe e não te percas numa romaria de pensamentos pseudo-lúcidos que conscientemente te levam a lado nenhum, o engenho é simples mas a corda é branda e às vezes é fácil demais deslembrar, admitida tentativa de fuga à nossa iniludível compleição mas nem sempre será isso mau, sei lá, passamos tanto tempo grudados a um emaranhado de concepções que foi já desfeito repetidamente em tantas ocasiões anteriores por tantas pessoas que parar e respirar por vagos instantes se constitui como uma alternativa claramente superior, talvez o silêncio nos ajude a aproximar da realidade que tanto desejamos e nos guie pelo caminho que teremos que desbravar no futuro para o fazer, devaneio meu, certamente, que ajuda apenas a mente a não resvalar para uma humildade mais deprimente, mas não interessa, não interessa porque eu sei, porque eu aceitei isso já há muito e porque não me resta mais por onde esconder quando o vazio se revela, é por isso que também eu o faço, desligo-me, fecho os olhos para os custosos segundos que vão passando e guardo o meu alento para um dia que chegará rápido de mais, mas decididamente não rápido o suficiente.
Surge de repente. A resposta devia ser óbvia e contudo é necessária alguma consideração. Porquê? As palavras desvanecem-se tão facilmente, é assustador. Tens a certeza que disseste o que disseste? Tens a certeza que ouviste o que ouviste? É impossível agarrar a verdade, não existem mãos desse tamanho. Não sei, limito-me a acreditar. Não há muito mais que possa fazer. Desagrada-me depositar a minha confiança em algo que não eu, mas o mundo não funciona de outra forma. É essa a resposta? Ah, que poder! Faz de mim quem eu não sou! Transforma-me numa coisa diferente!
Porém isso não ocorre. A realidade manifesta-se quando tem que o fazer. Sempre tive esperança que ela fosse de outra cor; ingenuidade custosa de uma imaginação desleixada. Para quê pensar? A fadiga prospera em tal ambiente. Larga tudo aquilo que te prende. Afinal, que diferença é que isso faz? Tu sabes aquilo que sabes. Estás farto exactamente por o saberes. Mas não te percas no processo. É demasiado fácil que isso aconteça. Demasiado perigoso quando o é deliberado. O que é que mudou? Procura-o. Vais encontrá-lo, eventualmente. Não desistas. Nunca o faças. Eu estou aqui.
Sempre odiei esta palavra. A simples ideia de que, independentemente do que façamos, do nosso esforço e da nossa vontade, nunca seremos capazes de alterar o rumo que nos foi desenhado outrora é inconcebível. Recuso-a tanto quanto não posso passar sem o fazer – é-me impossível aceitar um mundo em que os meus actos não dependem da minha própria volição, em que não sou mais que um fantoche despido de toda a responsabilidade e valor por uma sina qualquer e preciso de algo mais, de um significado maior, de saber que as coisas realmente interessam e que não fazem simplesmente parte de algo inevitável.
Não me importo de carregar aos ombros as consequências de tudo aquilo que fiz ou deixei por fazer, são testemunhas da minha vivência e da minha existência algures na linha temporal deste imenso universo e não permito que o façam por mim. Eu sou quem sou, e exactamente por isso é que nunca ninguém senão eu obterá todos os meus sucessos e cometerá todos os meus erros. É um peso tremendo, e admito que há dias em que mal me consigo levantar, mas ainda assim… ainda assim prefiro este sofrimento à comodidade do destino.
Porque o que eu te disse na altura, o que eu sentia… por mais encavacado que tenha sido, nada disso mudou, e não há um dia que passe em que ele não surja, não como algo predestinado mas como o seu exacto oposto. A realidade não me atinge de outra maneira…
Já nem disso precisas, ó Luz. Escapaste, fugiste do vazio que te aprisionava, do que te mantia afastada de tudo aquilo que a razão teimava em guardar e desapareceste. É insuportável a forma como aquele sítio te reflete, mais até do que o era na altura e ainda assim nada se compara a este descalabro. Dizer-te-ia para voltares, mas não sei se o quero tanto quanto duvido que me obedecerias. O taciturno silêncio corria inveterado já há demasiado tempo e por vezes pergunto-me se foste mesmo tu a causá-lo.
É que eu lembro-me. Neste miserável e destituído consciente por onde vagueias agora, eu lembro-me de tudo. O seu significado, no entanto, perde-se na vaguidade do pensamento, no vacilo da hipótese, e o que resta é um nada impossível de compreender que conheço em demasia. Talvez esteja à procura de algo que não existe, de uma justificação para o injustificável, mas não me é possível acreditar na ofuscação do sentido quando a minha realidade não é essa.
E daí, talvez a realidade não seja minha.
Sonhei contigo outra vez, hoje. Era de noite e a chuva não parava de cair. Não sei bem onde estávamos, era um local familiar mas ao mesmo tempo distante, característica realidade de quem dorme, distorcida por pedaços de memórias arrancados pela raiz e reorganizados de forma aleatória, era estranha, era estranha e porém eu conhecia-a inteiramente, sabia tudo o que havia para saber acerca dela, árvores a crescer em alcatrão e ruas sem fim de repente faziam sentido, ainda que não o fizessem na verdade.
Estava frio. Sei-o pelas roupas que vestias, pelas mãos que não paravam de tremer por mais que tentasse, não o sentia, pouco interessava tão inútil sensação, mas tu, tu abraçaste-me por causa disso, perguntaste-me se eu estava melhor assim, e porquê, porque é que até em sonhos elas insistem em cair, o quão ridículo isto é, que eu sou, estava à espera de quê, é apenas natural, porque é que havia de ser diferente, porque é que havia de ser capaz de te sentir quando o mundo não passava de uma absurda fantasia?
Desconheço o que te tinha trazido ali, o percurso daquela alucinação, e tudo porque não me lembro, simplesmente. A normalidade reside nesse esquecimento e todavia tal não acontece quando tu entras em cena, tentativas atrás de tentativas de fazer desvanecer a tua imagem somente a tornavam mais manifesta, eu não sei o que dizer e não, eu não percebo, recuso perceber, evidentemente, embora contestável se o é consciente, qual é o rumo, para onde é que se move… talvez o futuro abra caminho para um sítio diferente?
Congelou, parou de funcionar, simplesmente, O que é que se está a passar, o que é que tens, isto não é normal de ti, Eu sei, eu sei mas… não percebo, porquê agora, não faz qualquer sentido, é impossível fazer, o modo como o espírito se paralisou, como a mente se manteve em silêncio, não consigo controlar, tentativa após tentativa de recuperar a razão que se perdeu, de encontrar o caminho para um lugar menos afectado por tão sinistras entrelinhas, a inutilidade é assustadora, a verdade incontornável, atroz é a fadiga que me acompanha e decidi já não fugir, não vale a pena, nunca valeu.
Para onde estás a olhar? Mal consigo acompanhar a trajectória que os teus olhos descrevem, o cenário que pintas na tua mente, desconheço as suas cores, as suas formas, questiono-me por vezes se vês o mesmo que eu ou se na verdade percepcionas as coisas de uma maneira diferente, é possível, é mais do que provável, a distância que existe é enorme e não há um dia que passe sem que ela se faça visível, dolorosa e um tanto mesquinha, tal como ela é, já não sei onde lhe pegar, a fuga da imaginação arrastou a lucidez consigo e abandonou-me friamente na fronteira da demência, valerá a pena, sequer, o ânimo, a contenção, valerá a pena continuar ou será que as luzes se apagaram?
Não me convém a escuridão, regressar a tão amargo espírito, tão anestesiada vontade, custa pensar, até, saber que os pés têm que se mover apesar de tudo, qual é o interesse, o empenho, no meio de isto tudo só apetece desaparecer e a realidade não é senão cruel, um eterno jogo maquiavélico controlado por uma teia de desventuras e desencontros planeados com o intuito de se tornarem naquilo que são, nada mais, nada menos.
Odeio isto, estar aqui, saber que… Enfim, destrói-me a alma tão completamente, a razão, o sentido, ia jurar que a única coisa que vejo és tu, e contudo continuo sem fazer a mínima ideia de para onde estás a olhar, não sei se intencional ou não mas ainda assim, o que eu quero, ou, o que tu queres, já mo disseste, não já?
Porque é que choras? Porque é que gritas? Porque é que sofres? Porque é que finges? Porque é que esqueces? Porque é que foges? Porque é que não te mexes? Porque é que olhas? Porque é que pensas? Porque é que acreditas? Porque é que tentas? Porque é que sonhas? Porque é que pintas? Porque é que sujas? Porque é que escreves? Porque é que divagas? Porque é que falas? Porque é que fartas? Porque é que destróis? Porque é que cais? Porque é que ardes? Porque é que queimas? Porque é que não sangras? Porque é que não partes? Porque é que te controlas? Porque é que não enlouqueces? Porque é que mentes? Porque é que te esforças? Porque é que te matas? Porque é que não morres? Porque é que não atiras? Porque é que não cortas? Porque é que fechas? Porque é que não abres? Porque é que não desistes? Porque é que já o fizeste? Porque é que continuas a pensar? Porque é que esperas? Porque é que não vês? Porque é que escondes? Porque é que vives? Porque é que sentes? Porque é que amas? Porque é que suspiras? Porque é que te lembras? Porque é que ouves? Porque é que não largas? Porque é que não acabas? Porque é que não avanças? Porque é que não queres avançar? Porque é que vês o que não existe? Porque é que imaginas o que não pode existir? Porque é que não páras? Porque é que não encontras a verdade? Porque é que procuras a mentira? Porque é que te imobiliza a vontade? Porque é que te trava a saudade? Porque é que não consegues dormir? Porque é que não consegues desligar? Porque é que te consome o ruído? Porque é que desapareces na ilusão? Porque é que és?
Porque é que não consegues não ser?
Sinto-me perdido. Os olhos não conseguem ver o caminho que os meus pés pisam e a mente entretém-se a cravar nas paredes da consciência todos os rumos que lhe é passível de imaginar. É um desastre, e embora não inteiramente inesperado, a realidade tende a ser um tanto diferente quando encarada sem a possibilidade de ser repetida noite após noite consoante a nossa vontade.
Se eu saltar para o meio deste nevoeiro, será que ele me apanha, me ampara a queda e me consome na sua aparente imensidão? Eu gostava de tentar. Mais do que tudo, eu gostava de tentar, de esquecer aquilo que sei ou penso saber acerca desta máquina a que chamamos mundo, de queimar o livro que contém todas as regras que nos limitam e nos fazem crer que não somos capazes de fazer o que realmente queremos e simplesmente… tentar. Seria o último ponto da minha vida, e consolar-me-ia o facto de ter sido eu a pintá-lo.
O que estás a fazer ou, porquê, a que sítio julgas que isso te leva. Já é hora, e tu sabes disso. A solução não esta aí, nunca esteve, e é impossível fazeres com que as linhas convirjam. Terem-se cruzado, sequer, foi demais, e já é hora. Por isso despacha-te. O mundo inteiro está à tua espera.
Pois que espere. Não me convém o bom senso, a sua banalidade não ressoa perante o ridículo do meu ser e eu não sou capaz de passar sem resistir à razão. O que eu quero, confusão de minúsculas vontades descontroladas, olhar, sentir, abraçar, apertar e desta sem nunca te voltar a largar, a insensatez do afecto, o desespero da verdade e o esgotamento da saudade, saber que é real, ter essa confirmação constante, devaneios ardentes que mal permitem o sono. Jurada loucura, decerto, de um conflito constante entre fragmentos de sentido que dele nada possuem.
O mundo que espere. Não é meu, afinal, que nesse existe apenas uma forma.
É este o teu fim? Vais desistir, vais deixar que acabe assim, é isso? Nunca pensei que a tua palavra valesse tão pouco, que tu fosses tão fraco, e todavia parece que hoje é um dia de surpresas. Não vejo em ti a pessoa que em tempos fez promessas com a intenção de as cumprir, vejo apenas quem as quebrou, uma réstia da luz que iluminava a tua alma. Tu agora és nada, um pensamento volátil que se apaga quando se faz sentir e não mereces o teu nome quando dificilmente o podes chamar de teu.
Para onde foi a tua garra? A tua chama? Onde é que perdeste tudo aquilo que te fazia, e porquê, não que interesse mas a curiosidade fala mais alto. Talvez um dia me possas contar, quando deixares de fugir. Ou talvez não, porque, honestamente, já ninguém espera que o faças, questiono-me eu se o consegues fazer, sequer. Eu não tenho vergonha de ti, ao contrário do que se poderia esperar; és o perfeito exemplo para tudo aquilo que eu não quero ser, e ao menos nisso ninguém te bate. Embora verdade seja dita, provavelmente é complicado não ser quem eu sou já.
Porque é que não lutas? Tu tens o teu futuro nas mãos – agarra-o, enquanto podes. Eu sei que não é fácil, e eu sei que pode doer, mas se vais passar a tua miserável vida inteira a esquivar-te da dor, então viverás numa miséria digna da tua estupidez.
O rasto desapareceu. Já não o sinto mais, é estranho, abriram as comportas das incertezas e não param agora elas de jorrar, de inundar a casa que teimei não desamparar e afogar-me-ei dentro de em breve. É apenas normal, desconheço o que esperava a minha pessoa com os seus fulgurantes caprichos mas o desfecho não é senão previsível para quem se vê capaz de reter a sua presença.
É incrível como algumas coisas funcionam, e no entanto, porque é que continuo sem acreditar, ainda não observei o que me faria mudar de ideias, o que me traria repouso para a alma através da sua ruína e que finalmente me consentiria paz, decerto não uma vista inovadora mas uma que presentemente, mais do que nunca, encontraria o seu valor. Desgosto idear a reacção que se obteria, apesar de não ser árduo de todo fazer tal conjectura, espero somente que o declive não seja grave em demasia e que voz consiga encontrar forma de se moderar.
E daí, de que falo eu, ultimamente tendo em perder-me nas ramificações inúteis de ideias passageiras, que fazem sentido no momento em que se mostram mas que o perdem rapidamente, não sei como lhes fugir ou se o posso fazer, sequer, existem vestígios da verdade em toda a parte e talvez seja contraproducente escapar-lhes. O discernimento é um labirinto sem entrada nem saída, uma análise interminável dos mais minutos pormenores, e encontrar aquilo que é real não é tão fácil quanto parece.
Enquanto isso, eu espero. Questiono-me se o céu a que atento agora é o mesmo de há algum tempo atrás, se aquelas são as mesmas estrelas e se aquela é a mesma Lua, e contudo a única certeza que obtenho é que a noite mudou e que, com ela, o rasto desapareceu. Perderam-se os reflexos das pessoas e dos sentimentos que em tempos se observavam nas partículas que haviam sido deixadas para trás, perdeu-se a luz, e perdi-me eu, também. Não sinto a minha falta pois sei que estou num sítio eternamente melhor, esta sombra não é recomendada para aqueles que julgam viver e eu estou bem melhor não estando aqui.
Estou farto. Eu não aguento mais. Há dias em que talvez acorde e pense que consigo suportar o peso, que a minha mente é mais forte do que realmente é, por ter que ser ou por outra razão qualquer, mas hoje, e nem que seja só hoje, o pavio chegou ao fim. Encenações de meia-tigela com personagens saídas da imaginação de sabe-se lá quem não encontram aqui o seu lar e a questão se impõe logo à partida é, porque é que alguma vez encontraram, fantochada consentida pela incapacidade de acção, de raciocínio, pelo raio de esperança que existe apenas para aqueles que têm fé, nada mais que estapafúrdios imbecis, é certo, e contudo a sua presença faz-se sentir mais do que o habitual, o caminho é pouco iluminado e parece-me que parte de mim gosta de escuridão, quiçá quando cair o faça com força suficiente para não me querer voltar a levantar.
Que espectáculo ridículo, que actuação vergonhosa, quem é que seria capaz de conceber tão miserável cenário no seu perfeito intelecto, deslustra-me o bom senso atender ao facto de que participo veemente nesta peça mesquinha, nesta zombaria interminável, e mais ainda de que dela não quero sair. Um apelo ao discernimento transforma-se num plano maquiavélico em coisa de segundos e eu não lhe vejo uma conclusão, por isso faz o que te apetecer, quebra tudo o que tens a quebrar, parte tudo o que tens a partir, é o que sempre fizeste, cá eu já me cansei de apostar em jogos adulterados.
Levanta a cabeça. Tu sabes quem és, quem sempre foste, e achas mesmo que isto vale a pena, o esforço, a farsa, o ruído, a dor, qual é a recompensa que tens à espera ao final do dia, qual é a tua motivação, as coisas não podem voltar a ser como eram dantes, tanto quanto elas já não o eram há tanto tempo atrás, e será tão difícil de ver isso? Deixa estar, não interessa de uma maneira ou doutra, a relevância da questão desaparece com a mínima brisa e é culpa minha não me ter apercebido disso mais cedo, gastei demasiadas horas a entupir o espírito com reflexões insignificantes, semelhante ao que estou a fazer agora, e passou-me ao lado tudo aquilo que havia de mais óbvio.
Eu não faço a mínima ideia de onde isto irá parar, careço de um mapa para o meu suposto destino, mas o que quer que aconteça, quero apenas lembrar-me de que foi real, e de que eu, por mais que quisesse, nunca conseguiria imaginar o que se sucedeu, porque não se fazem sonhos assim.
Há tantas coisas que ficam por ser ditas ao longo de uma vida inteira, tantas conversas que ficam por ser tidas, tantos momentos que ficam por ser experienciados, e as razões, enquanto algumas permanecem emolduradas num arrependimento fatal, outras são aquelas de que simplesmente não nos conseguimos recordar – se o sinto já nestes lacónicos vinte anos, custa-me sequer imaginar como será daqui para a frente, e é um tanto infeliz, não é? Saber que no final, mesmo antes da chama se apagar, saber que o último pensamento que rumará pela vastidão da nossa mente será um principado pelo fatídico, E se?
Num instante sou capaz de me lembrar de imensas situações que gostaria de modificar e as justificações não são sempre as mesmas, percorrendo o espectro da redenção à curiosidade. Será que desgosto da realidade actual, será que era capaz de a desfigurar se oportunidade surgisse? Não sei.
Vem-me um sorriso aos lábios quando penso em todas aquelas pessoas que já passaram por mim, numa ou noutra altura, e que me afectaram o suficiente para que eu não me tenha conseguido esquecer delas – algumas não têm cara, outras não têm voz, muitas vezes o mero facto de saber que elas estiveram lá é tudo que interessa, tenho saudades de projecções nostálgicas que podem ou não ter existido, a imaginação é complexa e com o tempo torna-se árduo distinguir em lembranças o que é real do que não é.
Terei sentido o que penso que senti numa determinada altura? Terei falhado o que penso que falhei numa determinada altura? É quase impossível responder a este tipo de perguntas, a memória vai-se deteriorando com a passagem das estações e é difícil recuperá-la. Não nego que, por vezes, me recordo melhor de dias, noites, ou até meras horas, do que anos inteiros, mas mesmo nesses casos, por quanto tempo é que iremos poder afirmar isso? Os pormenores são as primeiras coisas a ir, seguidos dos momentos menos relevantes, e a partir daí é sempre a descer. É inevitável…
Voltando agora à questão anterior, julgo que seria capaz de alterar o meu passado. É verdade que o caminho que nos trouxe até aqui é o mesmo que moldou a nossa pessoa, que nos fez quem somos neste preciso momento, e ainda assim eu modificá-lo-ia. Há coisas e coisas, e eu dava tudo para poder voltar, para poder agir de uma maneira diferente, para poder dizer tudo aquilo que ficou por ser dito. Um tanto inocente, eu sei, e contudo ao final do dia esta ideia nunca passará de um sonho, de uma luz que os meus braços não conseguem alcançar por mais que os estique, e eu revelo-me pouco interessado na caracterização que me podem atribuir por possuir tão infantil fantasia.
O que é que estás a fazer? Para onde é que estás a olhar? Estás à espera de alguém?
À espera? Sim, talvez seja isso, eu estou a espera de alguém, de alguém que não chega, de alguém que nunca vai chegar, talvez esteja à espera dessa pessoa, de mim, e de ti também, tu que desconheço e que me fazes perguntas tais. Eu estou à espera do tempo, o tempo que espera por ninguém, quero perguntar-lhe, Porque é que és assim, Porque é que não mudas de vez em quando, Porque é que não paras, duvido que me responda, as coisas são como são e ele é como é, não há muito que se possa fazer para o mudar. Eu estou à espera do sentido, da justificação para tudo, para nada, da última peça do enigma que é o mundo, quero compreender a razão de ser das coisas, compreender que tal conceito não pode existir numa aleatoriedade tão perfeita, num caos tão subtil. E eu estou à espera.
Alimentam-me as horas perdidas, os raciocínios soltos, não sei que fazer mais se não pensar, lembrar tudo aquilo que foi, imaginar tudo aquilo que poderia ser, o detalhe exponencia a dor mas é ela tudo que eu tenho, o calor, o cheiro, o toque, tortura irremediável para um sonhador. O que eu quero, ou o que eu faço, expectativas desmedidas encontram o seu lar entre possibilidades impossíveis, pedaços de esperança mais frágeis do que o ar, a realidade é um sítio agreste para quem insiste em não viver nela, e eu não me estou a safar muito bem.
Eu estou à espera, sim, mas daquilo que vier, de uma noite em paz, de um momento de silêncio, a agonia é cansativa e eu estou cansado, não consigo escapar de mim tempo suficiente para não ser quem sou e eu estou cansado de o ser, chega, por favor. Chega.
Quem és tu? Porque é que falaste para mim? Entre tantas outras pessoas neste sítio, todas elas à espera de algo, porque eu, em particular? Porque é que estás aqui? Estas fantasias não têm fim e estes monólogos estão a tornar-se aborrecidos, pára, eu não preciso de ajuda, nunca precisei, eu sei o que estou a fazer, melhor do que tu, melhor do que eu, e asseguro-te que não preciso de ajuda. Não tentes, sequer, não quero que o faças. Esta dor é minha. Deixa-me ser quem sou. Deixa doer.
Aveiro, Madrugada do Dia 09 de Agosto de 2011
Para a pessoa que já há meses que não me sai da cabeça, dia sim, dia sim, pela qual eu experimento um enorme espectro de sentimentos que um pouco de tudo abrange, e que há quantizáveis instantes me fez mandar um enorme “Olha foda-se” a um volume não passível de ser tolerado a tais horas da madrugada pelos pobres coitados que não possuíram a rica oportunidade de se mobilizarem para as regiões mais a sul desta miserável terra, onde ao menos gastariam uma porção da sua insignificante vida em temperaturas consideradas amenas por indivíduos cujas raízes se localizam no continente africano
Tens razão. Em tanta coisa tens razão. E em tanta coisa não a tens. Desconheço a proporção propriamente dita, talvez 50/50, 30/70, ou quiçá 90/10, não sei mesmo, teria que planear uns estudos científicos no campo para ter a certeza mas talvez levem algum tempo e necessites de uma cadeira para te sentares à espera, acontece que não a tenho, passemos à frente então que também não interessa particularmente – onde é que eu ia? Ah sim: quero deixar bem claro logo à partida que a intenção disto não é fazer-te mudar de ideias ou algo do género, primeiro porque isso aparenta ser mais difícil de concretizar do que fazer malabarismo ao pé-coxinho com cinco mamutes pintados de cor-de-laranja ao mesmo tempo que eles jogam às cartas e fazem stand-up comedy para uma audiência de girafas surdas num submarino em cima de uma palmeira à beira de um vulcão em erupção, e segundo porque, bem, seria um tanto ridículo tentar fazê-lo através deste meio.
Agora que isso está esclarecido: pelas coisas em que não tens razão, és parva. Se isto te ofendeu, não te preocupes nem entres em pânico nem nada, que eu sou pior ainda. E daí, pensando bem, uma pessoa não deve determinar o seu valor através de comparações com coisas más mas sim com coisas boas; está bem, pronto, se quiseres mesmo muito podes ficar ofendida, é compreensível nestes termos. Não recomendo, mas podes. De uma maneira ou doutra, fico com essa impressão de ti, custa-me acreditar que acreditas em certas coisas e aceitar que aceitas certas coisas, mesmo quando eu te as tento negar a todo o custo. Admito que não tenho as respostas para tudo e que não consigo controlar o futuro por mais que queira (não estaria aqui se conseguisse, parece-me), e contudo acho honestamente que quase te obrigas a ti mesma a viver com essas ideias. O mundo é o que é e acaba quando acaba, não há mais nada para além disto, este tempo, este segundo que estás vivenciar enquanto lês isto, tu nunca o vais voltar a ver na tua vida inteira; estavas destinada a gastá-lo desse modo? Não brinques comigo, não me insultes de tal modo, desgosto de pessoas que o fazem. Cada um controla o que faz, tal como cada qual escolhe o futuro que quer ter. É este o teu futuro? E é este o meu? Foi para isto que serviram tantas emoções e tantas lágrimas e tanto sei-lá-mais-quê? Não te iludas, és tu que estás a responder a estas perguntas, não é um tipo com o sobrenome de “Sparks” que acha piada a histórias tacanhas e que o exprime através da tinta na sua caneta (quer dizer, duvido, ele deve fazê-lo no computador hoje em dia). “Acorda de uma vez por todas”, não há nada que eu te queira dizer mais que isto, gritar, até, nos teus ouvidos até te rebentar os tímpanos e até entrar alguma réstia de bom senso nessa irritante consciência tua. Só que eu abstenho-me, porque em tanta coisa tens razão.
Passo agora a explicar: não me passa ao lado a minha própria e tamanha estupidez, brutal densidade, deficiente comunicação (curioso e/ou triste se se tiver em conta que estou num curso com “comunicação” no nome) e brilhante esprit de l’escalier. Não não, nada disto me escapa: acontece é que pouco consigo fazer para mudar. Ei, o que é que queres que te diga, são genes, sou eu, já me devias conhecer. Eu não vejo coisas que estão à minha frente a não ser que que leve com elas nos miolos, falta de experiência no assunto, talvez, é difícil explicar, e surge repetidamente. Depois também não sou particularmente bom a exprimir-me, odeio linguagens, sabes – escritas, faladas, vão dar ao mesmo, obstáculos a uma verdadeira compreensão, haja saúde. Não ajuda nem sequer perceber-me a mim mesmo metade das vezes, caso à parte, parece-me (e daí, talvez não). Honestamente. Como é que te vieste meter no meio disto? Faço essa pergunta inúmeras vezes ao dia, juro que ainda não encontrei resposta satisfatória. Enfim, abstenho-me porque eu sou eu, porque tenho noção disso e não consigo passar sem ter conhecimento desse facto, porque nunca fui ninguém e tenho largas dúvidas que alguma vez venha a ser, e porque tu, apesar de parva, és uma pessoa espantosa que merece o melhor que o mundo tem para oferecer. E eu nunca te tiraria isso.
Não cheguei a explicar o que é que é “L’esprit de L’escalier“, pois não? Deixa estar.
Queria-te escrever uma carta a sério mas desconhecia um modo de te a entregar. Também duvido que a aceitasses. Não sei. Estive a ler as conversas todas de novo, foi essa a razão que me levou a fazer aquela exclamação, a escrever isto em primeiro lugar, o distanciamento é estranho, a perspectiva é estranha, e depois de tudo o que me disseste… é estranho, simplesmente. Eu não sei. Mas pára de me pedir o que há tanto me pedes. Eu não o consigo fazer. Eu não o quero fazer. E eu acho que tu também não queres que o faça, ainda que não o admitas. Aliás, tenho a certeza que sim. Por isso não vale a pena. Podemos, no entanto, fazer um concurso de teimosia. Até que era giro! Talvez não?
Eu não me quero despedir, e tu já o fizeste, “Olha foda-se” hein, acho que sim, acho mesmo que sim, também não serias a pessoa por quem sinto o que sinto se não fosse assim. Mas é nesta parte que te peço desculpa para aí pela centésima vez.
Desculpa, ó Tu do mundo branco. Eu amo-te.
Sim, sim, eu não me esqueço, não se preocupem, eu já volto, tentava esconder a ansiedade mas eles sabiam que eu estava a mentir, nunca gostei disso, é algo de família e incomoda-me que nunca lhe tenha apanhado o jeito, eu não ia voltar tão cedo, não hoje, o sol que brilha de uma maneira tão estonteante e a leve brisa em que esvoaçam teus caracóis impedem-me de o fazer, juraria a inexistência de algo mais belo que tal imagem, teria razão, em tão tenra idade a beleza não é mais que um conceito abstracto constituído por recortes de memórias e saudades e que sou eu senão uma criança, a simples ideia de estar contigo pinta a minha cara de outra cor e que sou eu senão uma criança?
Encontramo-nos no parque junto ao lago amanhã, é engraçado, já lá passámos tantas tardes juntos nos últimos Verões e hoje é diferente, talvez não no calor insuportável que se faz sentir nesta terra fantasma para onde nos arrastam os nossos pais mas na minha mente, não sei se na tua também, e eu ia… eu vou dizê-lo, ou penso que sim, é possível que fique demasiado nervoso e comece a engolir as palavras e contudo espero que não, tive tanto tempo para me preparar depois de me convencer que o ia fazer quando nos despedimos há um ano atrás, quando me apercebi que te dizer adeus custava só um bocado demais e que o teu sorriso não ajudava em nada a aliviar esse sentimento, e espero mesmo que te consiga dizer tudo o que tenho a dizer.
Olá, olá, olá, repetia nos meus pensamentos a conversa que ia ter contigo quando chegasse ao parque, ou pelo menos a conversa que queria ter – também tive em mente a alternativa menos apelativa no meio desses intermináveis diálogos imaginários, deixar as expectativas à solta é uma boa maneira de acabar magoado e eu sei disso, não sou assim tão ingénuo, embora esse facto não me tenha impedido de dar seguimento aos sonhos me acompanham desde casa, é impossível controlar, nunca tive tão excitado na minha vida e, ao mesmo tempo, também nunca tive tão assustado.
Estás à minha espera, vejo-te ao longe de azul sentada com o teu vestido e o teu chapéu de palha, o meu coração pára por momentos e a minha cabeça fica em branco, hoje é o dia…
Está a nevar. Uma camada de branco cobre todo o meu campo de visão, não lhe vejo o início tanto quanto não lhe consigo ver o fim, ia jurar que sempre lá esteve mas estaria a mentir, os meus olhos não estão abertos assim há tanto tempo e eu estaria a mentir, é estranho, é-o de uma forma demasiado acentuada e ao mesmo tempo não sei, não que não o saiba na verdade mas às vezes tento não saber, penso que será preferível fazê-lo, mencionei outrora que o mundo nunca se iria moldar à minha imagem por mais que quisesse e contudo vejo agora que a realidade é diferente, tenho pena que não o tenha visto mais cedo mas assim são as coisas, também não teriam interesse se fossem de outra forma qualquer quando este está no desconhecido, na escuridão cujo entendimento não deverá ser igual àquele que se tem usualmente, é uma aventura no seu todo, uma busca por uma história que vimos ser repetida tantas vezes enquanto crianças, já tinha esquecido a sensação, ou talvez nunca a tenha sentido sequer, não sei, ou tento não saber, há vezes em que é preferível fazê-lo…
E há vezes em que o oposto se aplica. A ingenuidade só é uma virtude quando a queremos ver como tal e encontrar uma maneira de lhe fugir é a melhor solução a longo prazo, já não somos quem éramos mas hoje somos quem somos, não me arrependo disso, não me posso arrepender, não seria capaz de viver se o fizesse, não tenho força suficiente, a memória é uma coisa maravilhosa se não tivermos que lidar com o passado e isso é algo que eu aceito por ausência de melhor alternativa, é impossível lutar por mais que queira, o único conforto que encontro é em saber que o presente está nas minhas mãos, nas nossas mãos, e que podemos fazer dele o que bem entendermos, se bem entendermos, sem que haja alguma coisa a impedir que o façamos.
Eu acredito. E eu acho que tu também acreditas, apesar de tudo, lá no fundo, onde te gostas de esconder e eu preciso de gritar para te atingir, eu acho que sim, porque te conheço, porque apesar de te dizer que não compreendo eu consigo fazê-lo, e é doloroso às vezes, exactamente por isso, mas eu não te consigo largar e tu sabes, não há maneira de não saberes.
Pedir-te-ia desculpa se não soubesse já que as acumulas, culpa minha, é certo, como temo que o é tudo, há coisas que não se podem remediar…
Nunca pensei que pudesse ser tão pesado, o acordar, o abrir dos olhos para enfrentar uma realidade que julguei abandonar quando os fechei, contudo a desesperança é evidente e tão alucinados pensamentos nunca tiveram lugar na minha mente, noutra altura perguntar-me-ia acerca da sua origem mas a inocência é agora uma palavra oca, digna apenas duma loucura que não encontra a sua dependência aqui. É exasperante imaginar o que imaginei, ou porventura ponderar que a sua existência é tudo menos certa, diria que surgiram lágrimas, todavia o sentimento é outro, um mais perplexo e envergonhado na sua natureza, resultante da uma simples paralisação do tempo.
Se há dias em que desgosto ser quem sou, este será um deles. Longe de solitário, certamente, este lugar estabelece-lhe precedente, a agonia de um destino incerto encontrou sempre o mesmo sabor, passado ou presente, pouco lhe interessa na sua amargura intemporal, arrastada por uma fama que insisto lembrar por motivos desconhecidos. Saberá quem é porque não faria sentido que fosse de outra maneira, embora por vezes me questione se o fará, realmente, ou se a reflexão ainda deriva para sítios incertos, longe da verdade que se impõe logo à partida.
É impossível voar, repete uma voz incomodativa, quiçá essa possibilidade ainda se estenda até aos meus pés, os ventos mudaram e gostaria de crer que não, no fim não sou eu que decido, ou talvez seja mais do que penso, é um desesperante desespero, tal como o é, e sempre foi, sentir o ar e permanecer em terra.
Dias transformados em minutos por um mero capricho singular, perdidos em pensamentos que desconheciam o rumo que os levasse a um sítio menos inebriado por tão insuportável escuridão. Não sei o que lhes aconteceu, não consigo ver o rosto de quem nunca encontrou o seu caminho, talvez seja melhor assim, é preferível não lembrar. Já não sou quem era então, tenho dúvidas que alguma vez tenha sido, o buraco é grande e mal lhe consigo ver o fundo, questiono-me se ele existe, sequer, ou se tais gritos ecoam apenas na minha cabeça, numa loucura mais aliciante que a realidade em si.
Tu foste a única coisa que me manteve aqui, a única coisa que fez sentido durante muito tempo, não quero imaginar o que teria acontecido se não te conhecesse. Nunca voltei a ver uma luz como a tua, com o mesmo brilho ou com a mesma intensidade, eras algo de especial, simplesmente indescritível, mas foi contigo que me apercebi que isso tinha tanto de bom quanto de mau. Tu eras como um farol para as pessoas que viviam nesta escuridão, um ponto de referência que as guiava por um caminho melhor, mas quanto mais elas se aproximavam mais se apercebiam o quão tu as ofuscavas, o quão apagadas elas eram em relação a ti, é incrível ver como a fascinação se transforma em desdém em tão curto espaço de tempo.
Também eu não fui inocente neste aspecto, a inveja aumentava de segundo a segundo quando estava contigo e o meu coração não passava sem sofrer… porquê a ti, de todas as pessoas, porquê a ti? Era tão claro que tais pensamentos não tinham qualquer lugar na tua mente e ainda assim não conseguia parar de sentir o que estava a sentir, de ver sorrisos em forma de punhal, a destruir-me a sanidade a cada momento que passava.
Este mundo não te merecia, e espero que tenhas encontrado um melhor, algures por aí. Talvez um dia nos encontremos outra vez, mas, até lá, boa sorte…!
Onde é que eu… estou?
Uma leve brisa apresenta-me um local que desconheço, uma praia, ou algo muito semelhante para uma consciência ainda inebriada por sono. Não faz sentido, a Lua mantém-se alta no meio de uma imensa escuridão mas não foi aqui que adormeci, nunca vi tal sítio na minha vida, Um sonho, sim, deve ser isso, tendo percorrido tantas outras possibilidades, esta é de longe a mais plausível.
Talvez, responde alguém num misto de risos abafados, como que se eu fosse uma criança perdida numa multidão, ao mesmo tempo que surge uma figura de uma rapariga vestida de branco ao meu lado com uma solenidade que lembrava aqueles anúncios tacanhos de anjos que tanto passavam na televisão, Quem és, Sou um sonho, não era isso que fazia mais sentido?
Os meus pés começam a enterrar-se na areia à medida que as ondas rebentam em seu redor, A água não está fria? Porque é que parece tudo tão… real, Onde é que estamos, Uhm, não sei, mas também, de que é que isso interessa, eu conheço-a, não reparei ao início, mas eu conheço-a de algum lado, de há muito tempo atrás, eu… Como é que tens passado?
Porquê? Porque é que elas não param de cair?
Intrigas-me da melhor das maneiras. Sempre o fizeste. Desde o momento em que te conheci, em que nos apresentaram e em que tu me dirigiste a palavra pela primeira vez, mentira assumida por motivos de manutenção de um imaginário idílico, eu soube. Talvez não conscientemente, mas eu soube, o tempo tinha-se começado a mover, e o mundo inteiro, cuja população havia subido para dois, iria atrás, arrastado por forças muito para além da compreensão de pessoas como eu.
Havia qualquer coisa de especial em ti, algo que trazia ao de cima aquilo que as pessoas tinham de melhor, as suas cores, as suas melodias – nunca consegui perceber muito bem o que era, tanto quanto nunca te consegui perceber bem a ti. Sempre tomei isso como a coisa mais natural de sempre, era parte de ti, de quem tu eras, e isso bastava, não te queria de outra forma.
Acho que nunca me vou esquecer de ti. É impossível. Entre tudo o que fizemos juntos, todas as nossas aventuras… lembras-te daquele dia em que apanhámos a lua? Em que subimos e descemos aquela escada enorme e em que ficámos pasmados quando a colocámos numa caixa e nos apercebemos que era mentira aquilo que diziam acerca da sua luz, nem que fosse somente pelo modo como ela iluminava o teu quarto à noite? Não te cheguei a contar, mas no meio da minha ingenuidade, eu tinha esperanças que a partir daí a noite iria durar para sempre, e que nós, com ela, não nos iríamos separar.
Mas aqui estamos. Ou aqui estou eu. Perdi a conta às luas que passaram desde então, e o teu sorriso começa cada vez mais a escapar-se da memória, resultado daquilo que se começou a mover quando te conheci. Não percebo porque é que ele não voltou a parar…
Porquê, porque é que continuas a insistir, sabes que não vale a pena, sabes que é inútil, que o mundo nunca se irá moldar à tua imagem e que nunca irás ficar satisfeito com aquilo que ele te apresentar, é impossível não saberes, sofres voluntariamente, como é que isso é possível, como é que alguém consegue ser tão estúpido, explica-me, por favor, que não faço mais pequena ideia, serás masoquista, não há final feliz aqui, não para ti, por isso acorda, abre os olhos e aceita aquilo que vês, não os feches por capricho outra vez, não te prendas na tua fantasia, tudo o que sobe tem que voltar a descer, e quanto mais tempo demorares a compreender isso… mas tu sabes, é impossível não saberes, certo?
Uma luz pisca, intermitente, no meu dormir, como se por mim chamasse, como se quisesse a minha atenção, insuportável, e pior a cada dia que passa, a cada hora, a cada minuto, a loucura bate à porta e não passo sem a abrir, porque não posso ou porque não quero, quando ela se encontra assim.
Começou a chover, de repente, num mundo muito para além de banais descrições, Estás a olhar para onde, Estás a fazer o quê, A luz continua a piscar, persegue-me, até neste lugar, O que é que te aconteceu, Estás bem, Ando por andar, numa ponte que me leva a sei lá onde, atravesso-a apenas para encontrar um sítio igual, mas neste lado já não é de dia e a chuva já não se sente, será simetria, Há tanta coisa para ver, Há tanta coisa para fazer, Estava a pensar que nunca mais chegavas…
Onde me levas, loucura?
Nunca te vi aqui, estás perdida, precisas de ajuda?
Não sei o que me levou a dizê-lo, saiu instintivamente, como se fosse a coisa mais natural possível, e quiçá tenha sido, não sei bem, sei apenas que o disse, e que tudo começou aí – ela não respondeu, ela nem sequer se moveu, para ela eu não existia, certamente não era mais que uma brisa, entre tantas outras, que por lá passava e que desapareceria em instantes, tal a sua fragilidade, Este não é o seu mundo, é demasiado banal para o ser, por isso é que pára tantas vezes naquele local, suspirando de tempo a tempo quando lhe dirigem a palavra, sempre com o olhar fixado numa ou noutra coisa, Tem saudades da sua casa, também teriam se este não fosse o vosso mundo, defendia-a cada vez que ela vinha ao assunto.
Ninguém a compreendia, e mesmo afirmando o que afirmava, nem eu era capaz de presumir tal coisa, afirmava-o exactamente por não compreender, por saber existir uma explicação por detrás de tudo, ainda que não tenhamos conhecimento dela, assim foi feito este mundo, muito para além do banal e do aborrecido com mistérios tais, É muda, mas já tantos disseram que a viram falar com amigas, Então não sei, mas normal não é, tema de conversa inevitável entre o grupo de rapazes com quem eu andava, escolhido de uma lista caricata pela escassez dos mesmos, E quem é que decide o que é normal, tu, sendo também inevitável o rumo tomado pela conversa enquanto me encontrava presente.
Silêncio constituía-se como todo o som audível perante as minhas tentativas de comunicar com ela, não sei porque o fazia, sempre o vi como o mais insignificante mistério no meio de tudo aquilo, mas um dia, talvez resultado desse mistério, ou de outra coisa qualquer, nada inteligível à minha pessoa, ela reagiu à minha voz, arrancando os olhos de uma velha árvore cuja existência excedia a minha por largos anos, famosa por eventos que ninguém na vila se dignava a explicitar, e olhando-me pela primeira vez, repetindo as mesmas perguntas que lhe fiz há muito tempo atrás.
Desde então nunca mais a vi, por golpe do destino, talvez, ter ouvido a sua voz terá sido demasiado, e ter arrancado os seus olhos daquilo que observavam tão atentamente heresia, porventura, pois também essa miragem se concretizou pouco tempo depois.
Sempre pensei que iria ser diferente – que, apesar de tudo, iria haver um final feliz, como nos filmes, talvez, onde o protagonista acaba sempre por se safar, independentemente da situação. A vida não é como nos filmes, pois não? É que aqui, aqui sou um figurante, um pedaço de papelão recortado e adicionado para enfeitar o mundo de todos os outros. Nunca fui especial, nunca me coube a mim a tarefa de salvar alguém, e nada está planeado para mudar isso.
Talvez queira ser quem sou. A vida é o que é, efémera, inútil, e talvez, talvez esteja melhor onde estou, a ver o tempo passar do lado de fora, lentamente, como que um espectador de uma magnânima peça de teatro.
E o mais engraçado é que nada mudará. Faça o que fizer, a roda vai continuar a rodar, do mesmo modo de sempre, como se nada fosse. Qual é o sentido disso tudo? Será que tem um sentido, sequer?
Porque é que ela não pára?
De que cor é o teu mundo? Sempre tive curiosidade em saber, já desde há tanto tempo, mas nunca me o mostraste. Não vou dizer que não percebo porquê, mas mesmo assim. Talvez, talvez se as coisas tivessem acontecido de um modo diferente… e daí, talvez não? Se calhar esta realidade é tudo o que temos, e esta vida tudo aquilo que viveremos, se acharmos saber viver. Uma linha, ou uma árvore, não interessa, honestamente, porque estamos aqui, pelo menos eu, e não mostro indícios de conseguir sair, conseguir fugir para um sítio onde a neve não é fria e o sol não é quente.
Porque não é esse o mundo que eu vejo. O que eu vejo é algo mais soturno e demente, que me consome a alma a cada minuto que passa ao dar falta de alguém. Esse alguém é quem, és tu, são tantos outros tu que existem por aí fora que ainda não assumiram ser tu, e, consequentemente, sou eu também, porque quem sou eu, e quem és tu, e qual é a diferença entre tudo isso…
É que esse teu mundo, ele tem cor, sequer?
Estás aí?
Eu, tu, e tudo o resto. É isso que sinto quando és tu, que não és somente tu, mas que trazes atrás tudo o resto. Não te chego, ou simplesmente não consegues existir em ti mesma? Talvez seja mesmo eu, não sou senão fragmentos de memórias acumuladas, perdidas, dispersas, e talvez, talvez seja eu…
Não vou negar quem sou apenas para ser transformado noutro não-ser, que já basta o que tenho agora, a arder, a rasgar, a sofrer, porque ao menos, ao menos esse é verdadeiro, de entre todas as teias de ilusões de que nos tentamos soltar dia sim e dia sim, ao menos esse é verdadeiramente não-meu, todo esse todo de memórias minhas e soltas e loucas a que eu dei a forma do meu Eu…
Ouves isto?
Uma disputa de sons silenciados, uma luta maquiavélica de murros e pontapés no ar, contra o ar, e o ar responde, nada faz, nada se ouve, nada se sente, e ao mesmo tempo todos aqueles não-eus que lutavam se desvanecem num mar de inexistências natas, essenciais para toda a nossa existência ainda por existir.
Desaparecem, pura e simplesmente, mas duma maneira muito longe da simplicidade, desaparecem não por quererem desaparecer mas exactamente pelo contrário, porque lutaram contra isso, tal como eu luto contra isso agora, desaparecei eu também, ou não queres tu saber de mim o suficiente para tal acontecer?
Silêncio. Um tanto constrangedor, mas as palavras não saem, não querem sair, talvez não sintam necessidade, talvez achem que no meio de tanto barulho o silêncio deva reinar, há já tanta agitação pela cidade a esta hora, talvez tenham razão. É espantoso, nunca tive a oportunidade de assistir a tal espectáculo, de onde vim era tudo tão impessoal, tudo tão dolorosamente tediante e sem cor, completamente diferente do que se vê aqui… é uma comparação inesgotável, eu sei, mas é impossível não a fazer, cada um define a sua própria realidade e esta é-me tão premente, tão minha, que não consigo separar-me dela sem que ela me leve atrás, esta parede incontornável da mudança, este maravilhoso mundo novo…
Continuamos a andar sem grande rumo, seja apenas por impressão minha ou não, e as ruas ficaram estreitas de repente, onde é que estamos a ir, porque é que não o sinto, o receio, o medo, porque é que não sinto nada disso, algo me leva a confiar nela mas não o sei explicar, será sequer possível fazê-lo, deixo-me levar enquanto organizo os meus pensamentos, ou finjo fazê-lo, embora verdade seja dita que não haverá grande diferença entre os dois, vou segui-la de uma maneira ou doutra.
“Chegámos!”
O relógio marca os dígitos zero, oito, três, zero, ao mesmo tempo que faz um barulho insuportável, já me tinha esquecido do que era ter aulas de manhã, desço até à cozinha para tomar o pequeno-almoço, parece que ela já saiu, anda-me a evitar desde aquele dia, não percebo muito bem o que vai pela cabeça dela, tento não o tentar. Está alguém em casa, estranho, uma pessoa a esta hora, era um rapaz, ou pelo menos é o que aparentava ser, no meio de tantas malas mal conseguia ver bem o cujo dito, Sim, estou aqui, Ah, és um dos estudantes que está cá a viver, Não, estou só a roubar-lhes comida, O quê, Sim, estou a morar aqui, porquê, Estás a roubar-lhes comida, Não, eu moro aqui, o que é que precisas, Ah, eu venho estudar para cá, sou o Tiago, Estudar, vens já um bocado atrasado, as aulas começaram a semana passada, Não pude vir mais cedo, Bem, tu lá sabes da tua vida, eu tenho que estar na escola daqui a vinte minutos, vou indo, Espera, sabes onde é que é o meu quarto, Não faço ideia, escolhe um qualquer, depois se quiseres, pergunta à rapariga que entrar por aqui a dentro com um ar amuado, chama-se Sara, Espera, O que é que foi agora, Não me disseste o teu nome.
“Sou o Daniel.”
A rodopiar pelos ares, como que a dançar, está tudo aquilo que vejo e que deixo por ver, à minha mercê talvez, ou não será este o mundo que me foi oferecido à nascença. Foi prenda, de quem, não sei bem, nunca perguntei, bastou-me saber que o tinha, que ele era meu, e que podia fazer dele o que me apetecesse para realizar a manutenção à minha estimada megalomania. Mesmo se quisesse, não faço ideia a quem haveria de perguntar, não conheço ninguém para além de mim que me consiga compreender, ou por não quererem ou por não saberem, tanto faz, no fim o resultado é igual.
Continuo, portanto, nesta minha realidade, a pensar, a voar, a fazer tudo aquilo que quiser, e a ela, construo-a de modo a que ela me construa a mim, numa infinita fatalidade, numa dimensão sem limites, como senhor absoluto de todo o nada que vejo e que deixo por ver, porque sou eu, porque sou eu, porque afinal sou eu! Aspiro por tudo aquilo que não desejo, porque sim, porque nem eu consigo conter tão intragável loucura que me possui e que me compele a ficar cada vez mais louco!
De repente, vazio. Encontro-me no meio do nada. Paralisa-me o medo do meu lado humano, não aguento mais, quero ser libertado desta natureza insuportavelmente limitada, livrar-me deste destino que faz de mim quem sou, uma indefinição, uma sombra, um entretanto que existe apenas quando algo não existe. Revela-se a verdade, sou nada, em todo o lado sou nada, um paradoxo duma existência sempre tão incerta e insegura, sou não existente e ainda assim, cá estou, muito para além de tudo aquilo que conseguem compreender. Quero regressar ao tempo em que que eu não era, simplesmente para voltar a não ser…
Por isso, por favor… por favor, ajudem-me.
Podes fazer um esforço, ou podes desistir.
Disseram-me, já há algum tempo, que essas são as únicas escolhas que um ser humano tem, independentemente da sua situação. Talvez não me tenha apercebido do verdadeiro significado dessas palavras na altura, mas ultimamente, não sei porquê, tenho vindo a compreendê-lo cada vez melhor. É estranho, vivemos com tal realidade desde que nascemos e ainda assim… ainda assim, tanto nos custa dar conta da sua inerente simplicidade, do seu imutável paralelismo.
Não fomos feitos para isto, penso eu tantas vezes. Quem somos nós? Porque é que aqui estamos? Criamos um gigante universo em volta da nossa vida, quando nem a isso sabemos responder. Não fomos mesmo feitos para isto. Mas espera. Talvez tenhamos sido. Talvez tudo isso não interesse? Que diferença fará saber ou não as respostas para aquelas perguntas? Aconteça o que acontecer, continuaremos aqui. Nada mudará. Mesmo que no fim não haja qualquer sentido essencial para as nossas vidas, para as nossas memórias, para tudo aquilo que chamamos de nosso e a que nos agarramos, não há nada que nos impeça de o criar.
Por isso é que este mundo consegue ser tão interessante; quando cada um dá o sentido que entender àquilo que reconhece como vida, quando cada um constrói o seu próprio conceito de realidade, nunca limitado por nada nem ninguém, acho que logo aí é possível encontrar um determinado significado, uma determinada direcção.
Fazer um esforço, ou desistir. A simples acção, assim como a simples inacção. Tentar, conseguir, ou não tentar e não conseguir, mas nem isso é fixo no meio da nossa definição do que é real. Porque existe mais um rumo à deriva, como nós.
A rodar, a dançar, e a acabar sempre no mesmo sítio.
Olha. Vê.
Ouve. Aprende.
Tenta. Desiste?
É suficiente. É demais. Mas
Pára. Pensa. Tentaste sequer? É isso que lhe chamas?
Pára. Pensa. Falhaste sequer? É isso que lhe chamas?
Penso. E faz-me confusão. Esta busca incessante por uma resposta inatingível, este emaranhado de relações sem sentido, esta vida faz-me confusão. Porque penso. Poderia não querer mais, mas talvez queira, talvez exista algo que faça sentido, talvez exista algo que não me faça confusão. E portanto continuo a pensar. Na esperança de que um dia eu queira mais. Do que nada. Do que tudo?
Quanto tempo será preciso? Eu… eu tenho medo. Será melhor não pensar, simplesmente?
Já não chega?
Sinto-o. Também o sentem? É difícil de exprimir em palavras, mas é tão claro, mais do que tudo, e mesmo assim! Nada significa tanto quanto isto, e nada significa tão pouco, como nós talvez, não seria de estranhar, a vida tem o valor que lhe dão e há quem chame disto vida, não sei, não sei, é difícil de exprimir em palavras…
Algo importante, precioso para nós, parecemos crianças mas é-nos importante mostrar, precisamos que outros compreendam o seu sentido de maneira a que ele faça sentido, somos quem somos afinal, chamam-nos complicados, chamam-nos simples, ambos estão certos e errados. Contudo, que sentido é que lhe queremos atribuir em primeiro lugar, será que nem isso sabemos, ou sabemos e esse não queremos mostrar, aquilo que nos faz e que o torna importante, esse algo?
Rangidos os degraus que atrás de mim ficaram, Dormiste bem, Não sei, é diferente, Logo te habituas, ambos sorrimos, mais por cortesia que outra coisa, Quando te despachares vai lá ter abaixo, vamos dar uma volta, desaparece nem um segundo após ter dito isso, não tive tempo sequer para dizer se queria ir ou não, e daí acho que era mesmo essa a intenção, situação estranha. De certeza que tens melhores coisas para fazer que ocupar o teu domingo comigo, não te quero estar a incomodar, Se e quando me estiveres a incomodar, eu aviso-te, já no caso de tu me estares a incomodar a mim, também te aviso, é melhor não, Para além do mais, estás mesmo a tentar esquivar-te de passar o dia com uma rapariga gira como eu, será que és, Não, saiu-me instintivamente, bastou para ela se rir.
“Anda lá então.”
Acordei pois, ou penso eu que sim, acho que não sofro de sonambulismo, quem saberá com toda certeza, bom, não faria muito sentido conseguir pensar em tudo isto se estivesse a dormir, confirma-se portanto que estou acordado se porventura alguém estivesse duvidoso desse facto, E daí não estás com grande cara, estás mesmo acordado, sim, sim, não vamos continuar com isto, estou mesmo acordado, ainda que o Sol me impeça de o demonstrar, habitual mudança de tempo pelo que parece. Levo as mãos aos olhos, melhor, já lá as tinha sem reparar, E então, descerro-os vagamente e fez-se luz, cliché eu sei, foi como me senti, útil tendência para a dramatização, deparo-me com uma silhueta feminina, Passa-se alguma coisa, não, não é isso, embora quase pareça que sim, de tão irreal que é.
Conheci-a ontem à noite quando cá cheguei, após horas de andar perdido pelo meio da cidade, é um estranho sítio este, nada parecido com aquele de onde vim, tinham-me já falado dele mas palavras não lhe fazem justiça, vá-se lá saber o que fará, os sonhos talvez, embora sirvam apenas para quem os conseguir ter. Afoguei-me, num lugar onde até a mais miserável luz inundava o mundo em sua volta num brilhante mar de fantasias, afoguei-me, não nos canais que permitiam tudo isso, mas na beleza assombrosa que não me deixava chegar ao meu destino.
E que destino esse, esse que me trouxe aqui, demasiado convoluto para a minha cabeça matinal, basta dizer que me trouxe perante uma rapariga, penso que uns anos mais velha que eu, estava também a viver na residência de estudantes para onde me dirigia, não sei bem qual é a situação dela, não lhe perguntei, mesmo se quisesse, duvido que teria conseguido, pouco faltava para cair para o lado que mais me pesavam as malas. Agora que penso, é um bocado esquisito que só estejamos nós os dois numa casa tão grande, disseram-me que iríamos ser quatro pessoas, a rapariga informou-me que uma delas tinha mudado de ideias, não me falou da outra, ou se falou, não me lembro, pergunto-me o que se terá passado, embora sendo honesto, prefiro que assim seja, é de maneira que ambos temos mais liberdade.
Não te lembras do meu nome, aposto, e teria ganho, é uma sorte recordar-me do que quer que seja que se tenha passado ontem à noite, Sara, Não, Lara, Não era mais fácil admitires que não te lembras, nunca fui grande admirador de admitir derrota, Joana, Foi completamente ao acaso, não foi, De que é que isso importa, muito, sempre achei de mau grado não recordar o nome das pessoas, perdoem-me esta. Começa a soprar o vento, noto agora que ainda não me vesti, hábitos antigos, volto ao quarto e começo a escavar as malas em busca de roupa, tenho que arrumar isto tudo logo à noite, ainda vou cá viver por algum tempo.
De repente há silêncio, a chuva parou, entra em cena um meu conhecido, o céu está a abrir. Desço as escadas que se encontram ao canto do quarto, ou será sótão, mais parece isso, espanto-me com o que vejo, assim haverá de ser por bastante tempo, é um quadro tão singular este em que me encontro, talvez só para mim por falta de hábito. Com a vista descolada das janelas, vejo que não está mais ninguém aqui, terá alguma coisa se passado, abro as portas que dão para uma espécie de corredor à volta da casa, é com alguma surpresa que vejo que estou no meio do mar, num pontão talvez.
“Acordaste, finalmente!”
Porquê, ninguém me responde, Porquê, ninguém quer saber, serei o único a compreender, é impossível não verem o que se está a passar, este sítio, o estado em que ele se encontra, acham mesmo que conseguem fazer voltar tudo ao que era? O passado já foi, e foi o que foi – levou-nos à situação em que nos encontramos hoje – e ainda assim querem-no tanto, chamava-lhe de estupidez mas é algo mais, não é que não saibam, simplesmente não querem saber, convém-vos a ignorância…
Já passei a negação, nunca a tive, nunca vi outra realidade que não esta, desconheço algo melhor, mas a solução, ou será que se pode mesmo chamar de isso, é fugir, é sair, é esquecer, mas a esperança tolda-vos e impede que verdade seja concretizada. Talvez um dia, talvez noutro, quem não tem mais espaço para néscias ambições sou eu, que quero algo bem mais plausível do que a vossa adorada quimera.
Disparates intragáveis, ainda se dão ao trabalho de atribuir culpas, estejam descansados, se não fossem eles eram vocês, era uma meta inevitável esta que colocaram à vossa frente, fiquem contentes, Deus escolheu-vos para assumirem este compromisso; são os preferidos dele, fiquem contentes, fiquem contentes…! Incuráveis idiotas, ainda neste momento rezam a um tal de Senhor para que vos livre de tudo isto, pois fiquem sabendo, estão a rezar pelo vosso enterro, e admito que não sei o que seria melhor, que a divindade invocada se cumprisse ou que não.
Abram os olhos e vejam a miséria, vejam os resultados das nossas acções e consolem-se ao pensar que ao menos não foram vocês a causar tudo disto, que não tiveram qualquer parte na pintura deste mapa cinzento, ou castanho, porventura ambas, e durmam descansados por mais um dia, pelo menos até terem que repetir o mesmo ritual. É por isso que muitas vezes me falam de como era o mundo, dizem até que o conseguem ver de vez em quando, só se for em sonhos, por mais que olhe vejo sempre o mesmo, têm pena de mim, e eu deles, não há mais espaço na Terra para sonhadores, se já não o há para sonhos.
Não há nada para mim aqui. Os desejos que guiam estas pessoas perdem-se em mim, e os que me guiam perdem-se neles, não cobiço por mais tecnologia, não espero uma solução vinda de exactamente aquilo que nos trouxe até este ponto, quero somente sonhar, não por tempos melhores, mas piores, pelo hoje, pelo ontem; já cá não estaria eu…
Parecem enamorados. O modo como ela o olha, como ele a reflete, se eu não soubesse o que sei, diria que estavam enamorados. Sei-o, no entanto, e talvez não o saiba ao todo, Onde estou, Porque estou, pergunto-lhes mas ignoram-me, mantêm a solenidade que os faz, que os une. Chove, também aqui, não a sinto mas ouço, que será este lugar, pondero milhentas respostas, quiçá uma estará correcta. Fizeram-me preso, por mais que ande no mesmo sítio fico, por mais que grite uma resposta não obtenho, estarei condenado para o resto da minha vida a presenciar tal alucinada paixão?
Não… não pode, tem que haver uma razão, será destino, será vontade de Deus, será sei lá quê, resido agora no cimo de um oceano de vidro não por feitiço ou maldição, isso o sinto, mas por algo diferente, sei-o porque não temo, e se ao estar entre um casal de fingidos amantes não me chega o medo, é sinal que ele aqui não tem lugar. E o que terá, tirando nós os três, ou simplesmente eu, que parecem eles paisagem? Já não espero por respostas às minhas perguntas, faço-as simplesmente por fazer, porque não consigo evitar, porque me consolam de certa forma, e como me consolam, se não fizer perguntas o que farei, neste infinito fim, o que farei?
A chuva piorou, noto-o pelo som dela a bater em algo familiar, veio acompanhada de algo diferente desta vez, uma voz, duas aliás, repetem-se sem parar, as suas palavras ecoam nas invisíveis paredes que me rodeiam, melodias hipnotizantes deste meu sonho.
Vejo-te, Lua
Vejo-te, Mar
Abertos os olhos, estranho a enorme clarabóia que me cumprimenta logo de madrugada, lá fora chove torrencialmente, Onde é que estou, recordo-me vagamente do que me trouxe aqui, carrego-me até às portas envidraçadas que dão para a varanda do quarto, é mesmo verdade, afogo os olhos em azul, claro indício de que não estou onde estive toda a minha vida, claro indício de que a minha realidade mudou. Esperei tanto tempo pelo dia de ontem, pelo dia em que pudesse deixar para trás tudo o que tomei como certo durante tantos anos, parte de mim ainda não acredita no que aconteceu.
Mas é verdade, tudo o que abandonei, tudo o que senti ao o fazer, nada disso pode ser falso, nunca me conseguiria iludir tanto, e se conseguisse, certamente que terias vindo comigo.
Que têm feito, meus senhores, agora ou no futuro, no passado ou agora, que têm feito vós toda a vossa vida, todo o tempo que viveram neste lugar, neste naco de pedra que é apelidado de Terra entre Homens e Desprezado entre Esferas Luminosas, aquelas que habitam muito para além do alcance dos nossos braços talvez como presságio à insignificância nossa também?
Ah! A beleza misteriosa de não ter mais que uma resposta vaga e incerta à questão que se deveria constituir como sendo a mais importante da nossa essência! Vivemos não sabendo porque o fazemos! Vivemos porque nascemos! Vivemos porque não morremos! Mas ah! Tão bem que escondemos esta realidade, esta realidade que nos tornaria não mais que animais e que é completamente inaceitável perante a torrente de éticas e morais que tanto tempo demorámos a construir e que nos fornecem uma tão distinta ilusão de que somos mais do que realmente somos! Matem-me! Esventrem-me! Torturem-me! Mas não me afastem esta quimérica existência! Deixem-me acreditar que sou Homem! Deixem-me acreditar que sou mais que Deus! Deixem-me! Deixem-me! Deixem-me!
Eu deixo. Vivam-na quanto quiserem, consintam que ela vos penetre como fez já a tantos outros, permitam que ela vos cegue com a sua majestade, que eu deixo. Mesmo que não, cada qual faz o que entender, nada tenho a ver com isso tanto quanto nada posso fazer para vos impedir.
Mas no entanto!
Tomem noção das atitudes que assumem! Saibam que o universo em que vivem não passa de uma fantasia conjunta e tolerada por demasiados imbecis! Saibam que por mais que ignorem, por mais que fujam, por mais que disfarcem, o facto de que não existe razão para a vossa vida não mudará! Não se deixem levar por ideais religiosos cuja única razão de existência se resume à consolação da vossa mente através da ocultação da realidade! Aceitem-na pelo que ela é! Livrem-se dessa debilidade que a sociedade tão alegremente vos impõe! Abram os olhos! Vejam! O mundo é um sítio cruel, injusto e ingrato, mas é nele que vivem!
Vivemos dominados por um mar de imposições sociais que mais não fazem senão manter a aparência civilizada. Uniformizamos as posturas perante tudo que nos rodeia, limitamo-nos à conformização de pensamentos: Talvez assim nos integremos! Talvez assim sejamos aceites! Talvez assim as pessoas gostem de nós! Até que ponto é que esta situação irá chegar? Quando é que nos iremos aperceber que acima de tudo estão os nossos impulsos carnais, e que tudo o resto se constrói em volta deles?
Tal ingenuidade! Rebelem-se! Se existe algo a que possam chamar de liberdade, então façam-na vossa! Livrem-se da sociedade que vos aprisiona – não é mais que uma doença, essa vil construção humana! Desprendam-se dos preconceitos que ela vos instaurou! Deixem-se teorias metafísicas! Uma ditadura colectiva e consentida não é o desassombro pretendido!
À revolução!
Há dias em que te vejo, vejo-te e pergunto-me, serás tu, será uma miragem dos meus desejos, confusão muito familiar neste meu emaranhado de pensamentos e considerações que tanto se debruça sobre ti, talvez só de aparência, mas que bem passava por tal. Por vezes. Noutras, as diferenças são avassaladoras, questiono-me se és a mesma de sempre ou se na minha mente reside a culpa, quem sabe, poderá também habitar no estimado criador, perdoem-me, pois esse mal não faz, embora tal presunção me deixe por vezes duvidoso, tal é a heresia. Acusa-se o Homem, portanto, não tenho culpa de ser quem sou, poderia ter nascido rã, ou pássaro, ou lá o que seja, mas cá estou eu como estou e como sou, é por este contentor que te imagino como algo que desconheces, quiçá melhor ou pior, argumento pior pois tu não és, e sempre se aprecia mais aquilo que a mão sente, e também o coração, um mais que o outro, e desta bem se sabe qual deles é.
És mesmo tu, eu o sei porque te vejo, e te ouço, e te cheiro, e te sinto, e outras encenações tão particulares daqueles que julgam estar enamorados, mais pelo conceito do que pela cuja dita, realidade bem enterrada sobre todos os preceitos e conceitos, com uma mistura pelo meio, que a sociedade tão alegremente nos educa, faltando apenas um suave balir e um verde pasto para completar a imagem. Ignoro isso por agora, que agora me ofusca o teu calor, o teu odor, a tua voz, a tua face, teus olhos ou teus cabelos, por cliché ou não, e me sossega tais pensamentos, que somente te afastam de mim.
Vem, não fiques aí, não há nada aí para ti, escusas de procurar, vem para perto de mim, podes vir, ou podes, será que podes, ou que queres? Ajudo-te se estiveres perdida, consolo-te se a situação o pedir, amo-te mesmo que ela não o faça, e tu, que farás tu, e não falo para quem faz o que eu penso que irás fazer, mas sim para ti: que farás tu? Nesse além, nesse teu horizonte, vives e continuas a viver, sem mim ou comigo, podes vir mas não o queres, não irei forçar, de que valeria tal esforço se não estivesses verdadeiramente aqui, sempre nesse além, nesse teu horizonte cuja existência supera por tanto a minha.
Não te quero aqui assim, pois mesmo que te queira, e bem sabe Deus que sim, se existir e me perdoar tal insistência herege, quero acima de tudo o que tu quiseres, aquilo que pretenderes atingir e que te tornará feliz. Se não é ao meu lado, que não o seja, não te posso mudar tanto quanto as pessoas não mudam, ou tanto quanto não quero que mudes, gosto de ti por seres assim, caso um cambie, cambia o outro como consequência, ou talvez não, continuarias igual se deixasse de gostar de ti, coloquei a hipótese porventura porque isso não irá acontecer, justificado por um conjunto de razões e argumentos muito para além da sua capacidade de existência, pelo menos nesta linguagem.
É impossível não sofrer com essa tua decisão, somos Homens afinal, e como Homens que somos, queremos sempre saciar as nossas necessidades, viver os nossos sonhos, e saber que tu, meu sonho, não me partilhas como tal, destrona qualquer racionalidade ou razão que me domina e permite que seja possuído por algo diferente, algo mais verdadeiro, amargo também, assim é o trago na minha boca. Somos diferentes dos animais, somos racionais, somos superiores a eles, mas é mentira, cada bem tem um mal, tudo tem o seu balanço, e mesmo quando estamos ocupados a fazer o nosso papel nesta enorme peça de teatro de que chamamos vida, acabamos sempre por deixar quem realmente somos escapar, apercebendo-nos que não passamos de bestas que se seguram em duas patas e que se vestem bem.
Que vida esta, e que vida a minha, ou a de todos, quem sabe, passamos uma eternidade à procura de justificação para a nossa existência, apenas para descobrir que não a há. Eternos miseráveis, sem dúvida, tentando sempre encontrar conforto noutra pessoa, em ti, tal como tu o encontras nesse além…
Pedir-te-ia que me salvasses, mas que diferença faria, somos Homens, afinal.
“Lembro-me como se fosse ontem.”
Mas não foi ontem… todos aqueles momentos, todos aqueles dias que passámos ao relento em busca das luzes que a noite insiste em espelhar, nada disso foi ontem, pois não? Por vezes, depois de sair da escola, dou por mim a passar por lá – acho que parte de mim ainda acredita que as coisas podem voltar ao que eram, que tu ainda podes… sabes?
É estranho, mas não é algo que consiga mudar assim de um dia para o outro. Aconteceu tudo tão de repente, e ainda não fui capaz de parar e absorver a realidade. Acordo muitas vezes a acreditar que ainda estou lá, que aquilo não passou de um sonho; claro que são ilusões de pouca dura, mas aprecio-as quando posso. Não imaginas o quanto custa enfrentar este hoje – abrir os olhos para um mundo coberto por tons de negro e castanho, para uma paisagem em ruínas, para um sítio onde não te consigo encontrar por mais que procure. É insuportável pensar, existir. Vivo por não morrer, sonambulando pela vida como que um passageiro cujo único objectivo é ver a paisagem passar.
Tenho medo. Tenho tanto medo. De enfrentar o mundo, de encarar aquilo que já cá não está. Tenho medo de que se o faça, eu consiga continuar a minha vida sem ti, que seja capaz de seguir em frente, apesar de tudo. Não me quero separar de ti, da tua memória, do teu eu que foi outrora e que eu sei que vive, vive, ou não é comprovado pelo facto de ainda estar eu aqui. Tenho medo porque também sei, e tu que sempre me criticaste por isso, que se tudo aquilo que disse acerca da natureza do nosso ser for verdade, eu me esquecerei de ti. Mas agora, sabes, parece tudo tão irreal. É fácil falar, mas a realidade é tão diferente quando a vemos de frente.
Estás tão distante, e ainda sinto o calor da tua face. Os teus olhos brilham, por vezes mais que o Sol (penso eu muitas vezes), e vejo-os tão bem. Falta-lhes algo, porém… falta-me algo – faltas-me tu. Por mais que tente, não te consigo tocar; por mais que corra, não te consigo atingir. Porquê… não percebo. Tento uma e outra vez, tento até não mais conseguir, e não percebo.
Quero-te mais que tudo, e mais que tudo não chega. Deixem-me então viver, deambular por aí, em busca de um nada que chegue.
Sentada, olho para o céu. Sempre à espera de algo, de um significado, de uma realidade… de um sonho? Não sei. Sei apenas que ele reside para além deste céu. Deste céu que nos engana ao chegar no horizonte. Deste céu que não vive senão suportado por terra e mar. É este céu que nos rodeia, é ele que me impede de chegar onde quero ir.
“Porquê?”
Não te iludas. Não é o céu que te limita. Não o culpes pela tua fraqueza, pela tua preguiça, por tudo aquilo que te falta. É culpa tua. Tu, que cambias a vontade pela ilusão, deverias conhecer à partida o resultado das tuas ambições. Agora sente-a. Sente a tua impotência. Perante tal sonho, encara a tua inaptidão de o concretizar.
“Não… recuso-a.”
Recusa-a quanto quiseres, mas é das únicas verdades que conhecerás na tua vida. A restrição humana é demasiado poderosa para a conseguires superar. Contenta-te com aquilo que tens. Cinge-te àquilo que os teus braços alcançam. Não és especial. Nem todos têm a possibilidade de ter o que querem, o que desejam. Neste mundo real, injusto, como o queiras chamar, tu não és ninguém.
“Mas”
Chega. Não farei mais parte no teu mundo de fantasia. Compreende duma vez por todas que a realidade é o que é, não o que queres que seja. Deixa-te de quimeras absurdas, abre os olhos.
“…”
Tens razão. Tudo o que disseste, é tudo verdade. Não o nego… melhor, não o posso negar. E no entanto, também não sou capaz de viver com isso. Estou restringido ao meu ser, às minhas capacidades, mas isso não significa que deva parar de tentar atingir o meu objectivo. Porque apesar de ser como sou, apesar de ser impotente como disseste, a verdade é que nunca irei parar de tentar. É quem eu sou, é a minha existência inútil e persistente, irritante e teimosa. Porque sabes… mesmo que no fim não seja capaz de superar a realidade, sou incapaz de desistir do meu sonho. E é por isso que vou conseguir. É por isso que um dia, não interessa quando, vou chegar perto dela – dela, que passa os dias sentada a olhar para o céu – e vou ser capaz de lhe perguntar.
“Queres ver para além das nuvens?”
É Setembro, é o fim do Verão. A chuva bate incessantemente nas janelas da sala. Ouve-se por todo o lado aquele ruído característico, indescritível. Ofuscado por algo muito maior no entanto – por algo mais sonante, mais forte.
Melancolia. É ela que se faz sentir por toda a sala. É ela que se deita uma e outra vez sobre a folhagem cuja sombra cobre o edifício inteiro em dias melhores. Nunca ausente, hoje revela-se mais que o habitual. Na palidez dos rostos, no desespero dos suspiros, num ambiente incomodativo mas familiar. Não gosto destes dias. Fazem-me relembrar o passado, as escolhas que fiz, os meus erros. E tudo para quê? Independentemente do que fizer, nada irá mudar. O passado manter-se-á um sonho inatingível, apenas restando memórias de um presente que o tempo levou.
Enganador, o tempo. Ilude-nos constantemente, mente-nos ao dizer que cura tudo, seduz-nos com a sua aparência infinita. Chegamos ao fim apenas para perceber que foi tudo em vão. É o principio inexorável da vida, não é? Só no fim é que damos conta daquilo que ficou por fazer, do que perdemos, e do que ganhámos e a que não demos o seu devido valor. Tomamos tudo o que temos como garantido – é um erro comum e ingénuo, embora inevitável tendo em conta a natureza humana.
Acredito que somos quem somos e porém, não consigo resignar-me à fatalidade das minhas lembranças. Não por querer alterar o caminho que me trouxe até onde moro hoje, mas porque me consome o facto de não conhecer as alternativas. Por não saber que realidade me aguardava tendo eu entrado noutra porta. Se essa seria melhor ou pior que aquela que enfrento neste momento…
Enfim, é impossível escapar à influência deste ambiente quando o próprio edifício emana algo soturno, misterioso até. A agitação habitual desencontrou-se no caminho para cá, talvez pela névoa que dura já desde madrugada. A escola não é a mesma nestes dias. É inundada de pensamentos vazios, de metáforas sem sentido, de poesia… Em tempos tentei escrever poesia. Dias colados a uma folha numa tentativa mal sucedida de fazer palavras rimar.
De fazer sentido do mundo.
De fazer sentido dela.